quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

'NOITE DE SAUDADE'




A noite vem pousando devagar
Sobre a terra que inunda de amargura...
E nem sequer a bênção do luar
A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar
A sua dor que é cheia de tortura...
E eu ouço a noite a soluçar!
E eu ouço soluçar a noite escura!

Por que é assim tão escura, assim tão triste?!
É que, talvez, ó noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó noite!... Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

Florbela Espanca
in A mensageira das violetas.







sábado, 19 de setembro de 2015

EVOCAÇÃO




Quando nasce amanhã cheia de graça
E a beleza da mata se irradia
Com o cantar da passarada
Surgem tênues raios de luz.
E o sol, ao longe, desponta.
É a alvorada que surge,
O doce e alegre amanhecer!


Olympiades Guimarães Corrêa
Em Neblina do Tempo-1.996

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

AQUI SOBRE A NOITE,




Aqui sobre a noite,
na cinza das pálpebras,
no meio das rosas,
no sono das aves,
nas franjas da lua,
nas imóveis águas,

aqui, sobre a tênue 
seda da saudade,
a perpétua face.

Sozinha contemplo
o ardente milagre.
Ninguém mais te avista,
Verônica suave!
-Desenho do sonho
que a noite reparte.

Por que me apareces
igual à verdade,
ilusória imagem?

Na minha alegria,
corre um mar de lágrimas.
Tudo se repete,
na terra e nos ares,
e os meus pensamentos
são só teu retrato.

Em puro silêncio,
luminosa jazes:
tão doce e tão grave!

Fita bem meu rosto,
guarda os olhos pálidos
com rios antigos
por onde viajaste.
Lembra-te da minha 
sombra humana, diáfana,

-pode ser que um dia
todos nós passemos
pela Eternidade. 


Cecília Meireles
In: Canções -1956-



quinta-feira, 13 de agosto de 2015

EXCERTO LITERÁRIO




"Eu queria aprender o idioma das árvores 
saber as canções do vento nas folhas da tarde.
Eu queria apalpar os perfumes do sol."

_________Manoel de Barros,
in Poesia Completa



quarta-feira, 15 de julho de 2015

DÁ-ME A FESTA MÁGICA



DEUS – e de onde é que tiras para acender o céu
este maravilhoso entardecer de cobre?
Por ele soube encontrar de novo a alegria,
e a má visão eu soube torná-la mais nobre.

Nas chamas coloridas de amarelo e verde
iluminou-se a lâmpada de um outro sol
que fez rachar azuis as planícies do Oeste
e verteu nas montanhas suas fontes e rios.

Deus, dá-me a festa mágica na minha vida,
dá-me os teus fogos para iluminar a terra,
deixa em meu coração tua lâmpada acendida
para que eu seja o óleo de tua luz suprema.

E eu irei pelos campos na noite estrelada
com os braços abertos e a face desnuda,
cantando árias ingênuas com as mesmas palavras
com que na noite falam os campos e a lua.

 Pablo Neruda
Tradução: José Eduardo Degrazia 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

NOITE E DIA





E então a noite caiu, para que não se falasse
do cair da noite. A noite caiu tão fria como as
últimas noites que caíram, neste princípio de
inverno, e ninguém pôs um colchão por baixo
dela para que a noite não se magoasse, ao cair.
A noite limitou-se a cair, e com ela caiu o céu
sem lua, com todas as estrelas do universo a
caírem com ela. Só os olhos não caíram, porque
para verem o céu e as estrelas que o enchiam
tiveram de se levantar. E foi preciso falar
do cair da noite para que os olhos tomassem
a direcção do céu, e descobrissem tudo o que
havia no céu sem lua. “Deixem cair a noite”,
disse alguém. E logo alguém pediu que o
dia se levantasse, como se uma coisa estivesse
ligada à outra. Então, o dia levantou-se da
noite em que caiu; e a noite caiu sobre o dia
que se levantava, para que a sua queda fosse
amparada pelo colchão do dia, e as estrelas
tivessem onde pousar, à medida que caíam.
—-

Nuno Júdice.
As coisas mais simples

terça-feira, 2 de junho de 2015

ANTIELEGIA ETÉREA




Na medida em que caem
os frutos, caem os homens,
caem as folhas, o sol cai
para o alto com as estrelas.
E eu, como um tronco
envelhecendo, vou ficando
oco por dentro e começo
a ser ocupado pelos passarinhos.
Começo a ser passarinho
no tronco. Até que o musgo
no céu me torne eterno.


Carlos Nejar

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O SILÊNCIO




Há um grande silêncio que está à escuta...

E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta... 
e cala.”

Mário Quintana
Em “Esconderijos do Tempo


domingo, 24 de maio de 2015

A LUA DE BABILÔNIA





Numa esquina do Labirinto 
às vezes 
avista-se a Lua. 
“Não! Como é possível uma lua subterrânea?”

(Mas cada um diz baixinho: 
Deus te abençoe, visão...)

Mario Quintana
Do livro: Poesias Completas

domingo, 17 de maio de 2015

ASA NO ESPAÇO


Arte Igor Zenin


Asa no espaço, vai, pensamento! 
Na noite azul, minha alma, flutua! 
Quero voar nos braços do vento, 
quero vogar nos braços da Lua!


Vai, minha alma, branco veleiro, 
vai sem destino, a bússola tonta... 
Por oceanos de nevoeiro 
corre o impossível, de ponta a ponta.


Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.


Castelos fluidos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
... Asa, mais alto, mais alto, mais!

Fernanda de Castro 
 

terça-feira, 12 de maio de 2015

2



 
 
Na noite transfigurada só ficaram os cedros e os
ciprestes.
A lua surgiu, mas como, na lembrança, um rosto
antigo explende palidamente e depois
se apagou.
O vento veio, mas como um pássaro branco de
grandes asas fatigadas: esvoaçou, lento
entre as frondes, pousou no chão e
adormeceu.
Os outros seres perderam-se no caminho dos
milênios.
Ficaram apenas os cedros e os ciprestes e, na altura,
as estrelas.
E para além dos ciprestes e cedros há só deserto e
esquecimento.
 
 
 
Tasso da Silveira
in Solilóquio.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

MIA COUTO



Olhei o poente e vi as aves carregando o sol,
empurrando o dia para outros aléns.

MIA COUTO
in "O último voo do flamingo" 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

PENUMBRA





 Na penumbra dos ombros é que tudo começa
 quando subitamente só a noite nos vê
 E nos abre uma porta nos aponta uma seta 

 para sermos de novo quem deixámos de ser

   David Mourão- Ferreira,
 Obra Poética ( 1948-1988), p. 214 

domingo, 19 de abril de 2015

NOCTURNO



Devagar, devagar... A noite dorme
e é preciso acordar sem sobressalto.
Sob um manto de sombra, denso, informe,
o mar adormeceu a sonhar alto.

Devagar, devagar... O rio dorme
sobre um leito de areias e basalto...
Malhada pela neve a serra enorme
parece um tigre a preparar o salto.

E dorme o vale em flor. Dormem as casas.
Nenhum rumor. Nenhum frémito de asas.
Nada perturba a noite bela e calma.

E dormem os rosais, dormem os cravos...
Dormem abelhas sobre o mel dos favos
e dorme, na minha alma, a tua alma.


Fernanda de Castro


segunda-feira, 6 de abril de 2015

SPLEEN




Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;

Quando se muda a terra em úmida enxovia
D'onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no teto apodrecido;

Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D'uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em febre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,

- Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorar e a carpir se arrastam pelo mundo;

Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh'alma sombria. A sucumbida Esp'rança,
Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!


Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães

AMANHÃ



Amanhã! — é o sol que desponta,
É a aurora de róseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flor.

Amanhã! — é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se de dor,
É da brisa o suspiro, — é das aves
Ledo canto, — é da fonte — o frescor.

Amanhã! — são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triunfo que a vida nos doura,
Ou a morte de baço palor.

Amanhã! — é o vento que ruge,
A procela d'horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.

Amanhã! — é a folha pendida.
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.

Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!

Amanhã! — o que val', se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor!

Gonçalves Dias

ENTRE O LUAR E A PAISAGEM...


 
 
Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.
 
Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade,
Atrai e doi.
Segue-o meu ser em liberdade.
 
Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Não é nem faz,
Só de segui-lo me perdi.
 
Fernando Pessoa
In Cancioneiro
 
 
 

INVICTUS





Do fundo desta noite que persiste 
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa; 
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza. 

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.



 William E Henley
Tradutor: André C S Masini



segunda-feira, 23 de março de 2015

VERSO AVULSO




Senhor! Que buscas Tu pescar com a rede
das estrelas?

Mario Quintana,
in 80 anos de Poesia



NUM PAÍS DE NOSTÁLGICOS NEVOEIROS...




***

Num país de nostálgicos nevoeiros
de paisagens em lenta mutação,
largarei de repente o meu bordão...
E hão de pasmar os outros caminheiros!

E andando como a lua nos outeiros
ao encontro da lenta procissão,
pousarias a mão na minha mão...
enamorados sempre... e sempre companheiros!

E diante de tão doces aparências
quem diria que em duas existências
nos separara o mundo - anos inteiros!

E, sentados à sombra de uns olmeiros,
trocaríamos falsas confidências...
cheias de sentimentos verdadeiros!

Mario Quintana
In Baú de Espantos




XII



 Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana
In: Espelho Mágico

PAUSA





Oh! todo o sossego e lucidez das madrugadas,
quando o último grilo já parou seu canto e ainda
não se ouviu o canto do primeiro pássaro…

Mário Quintana
Caderno H



domingo, 22 de março de 2015

RETRATO EM LUAR





Meus olhos ficam neste parque,
Minhas mãos no musgo dos muros,
Para o que um dia vier buscar-me,
Entre pensamentos futuros.

Não quero pronunciar teu nome,
Que a voz é o apelido do vento,
E os graus da esfera me consomem
Toda, no mais simples momento.

São mais duráveis a hera, as malvas,
Que a minha face deste instante.
Mas posso deixá-la em palavras,
Grava num tempo constante.

Nunca tive os olhos tão claros
E o sorriso em tanta loucura.
Sinto-me toda igual às arvores:
Solitária, perfeita e pura.

Aqui estão meus olhos nas flores,
Meus braços ao longo dos ramos:
E, no vago rumor das fontes,
Uma voz de amor que sonhamos.

Cecília Meireles
In Retrato Natural

À HORA EM QUE OS CISNES CANTAM




Nem palavras de adeus, nem gestos de abandono.
Nenhuma explicação. Silêncio. Morte. Ausência.
O ópio do luar banhando os meus olhos de sono...
Benevolência. Inconsequência. Inexistência.

Paz dos que não têm fé, nem carinho, nem dono...
Todo o perdão divino e a divina clemência!
Oiro que cai dos céus pelos frios do outono...
Esmola que faz bem... - nem gestos, nem violência...

Nem palavras.Nem choro. A mudez. Pensativas
abstrações. Vão temor de saber. Lento, lento
volver de olhos, em torno, augurais e espectrais...

Todas as negações. Todas as negativas.
Ódio? Amor? Ele? Tu? Sim? Não? Riso? Lamento?
- Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais...

Cecília Meireles
In 'Nunca Mais e Poema dos Poemas'1923

DISTÂNCIA




QUANDO o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve sêco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...


Cecília Meireles
in 'Viagem'

PAZ




Caminhemos até as árvores... o sonho
Se fará em nós por virtude celeste.
Caminhemos até as árvores; a noite
Nos será branda, a tristeza leve.

Caminhemos até ás árvores, a alma
Adormecida de perfume agreste.
Cala-te, porém, sê piedoso, não fales;
Não despertes os pássaros que dormem. 


Alfonsina Storni
(Livre tradução de Fernando Campanella)



terça-feira, 10 de março de 2015

APOTEOSE




No horizonte profundo
mãos invisíveis suspenderam
a cortina sem fim das trevas mortas...

e cem lâmpadas claras se acenderam!

...e a luz radiosa entrou pelas cem
portas do Palácio do Mundo...


Tasso da Silveira,
in Canções à Curitiba
& outros poemas


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

SONHO VIGÍLIA, MADRUGADA...




Sonho, vigília, noite, madrugada?
Um a um, desfolhei os sete véus,
e adormecido o corpo, a alma acordada,
um a um, escalei os sete céus.

Sem limites de tempo nem espaço,
quanto tempo durou minha viagem?
Andei mundos sem dor e sem cansaço,
ficou, em meu lugar, a minha imagem.

Agora, de regresso, cumpro a pena.
Tudo esqueci dessa abismal distância
mas algo é diferente: volto à arena
com uma nova inocência, um gosto a infância.

Serena, com uma paz desconhecida,
aceito, sem revolta, a humana sorte:
viver, da Vida, esta pequena vida,
morrer, da Morte, esta pequena morte.



Fernanda de Castro,
in Poesia II






quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

NOTURNO




Sol posto... É quase a hora da saudade.
Nasce a noite da própria claridade
que ainda se estende pelos campos fora.
Um sino na distância... É quase a hora
do silêncio, do mar e das estrelas.
Estas nuvens irreais são caravelas
que vão levar-nos para lá da vida.
É esta a hora suave, enternecida,
em que não apetece falar alto.
Na sua voz profunda de contralto
reúne o mar as vozes de mil almas.
Vamos sonhar... Há nestas horas calmas
tantos sonhos errantes, que é pecado
abandonar p que nos passa ao lado.
Nada perturba o sono dos jardins.
Enlaçam-se as glicínias e os jasmins
na paz noturna, idílica, das flores.
Tomam a mesma cor todas as cores,
bate o luar em todos os caminhos,
dormem perto do céu, todos os ninhos.
Em passos de ladrão que se acautela,
a noite desce, azul e misteriosa.
Fechou-se agora a última janela.
Adormeceu a derradeira rosa.

Fernanda de Castro
em Trinta e Nove Poesias –

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

MANOEL DE BARROS




Eu conheço. Eu sei. Metade do sol já se foi
tomado por pássaros.

Manoel de Barros
in Matéria de Poesia|










quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

MUNDO MORTO




Resto de tarde já de si vazia, 
viva sombra da noite antecipada.
A chama esvai-se, apaga-se o teu dia
que, pesadas as coisas, não foi nada.

Pensar em tudo: no horizonte mudo,
no visto, no sonhado, no vivido,
e sentir, como um bêbado, que tudo
surge sem forma: nada tem sentido.

Coisas ida, presentes e futuras,
tudo se tece de uma vaga bruma,
um compor de mil formas tão obscuras

que não se sabe quando nasce o dia
e, quando nasce, ninguém vê nenhuma
luz. Ó dia cansado de ser dia! 


Emílio Moura
In: Itinerário Poético

A NOITE TOMBA DE REPENTE




Assisto a tudo, serenamente,
como quem nunca viveu.
A noite tomba de repente.

Hora de olhar e não ver nada,
hora discreta, fina, que eu
sinto fugir, abandonada.

Um grito rasga o céu sereno.
Ah! para que anda no infinito
aquele grito?

A noite veio como um doente
que bebe as horas como um veneno.

E eu olho tudo, serenamente.

Mas o grito que rola e enche todo o infinito,
e desce à terra e sobe ao céu,
esse grito, entretanto,
vem de mim mesmo, num desencanto,

é MEU!...

Emílio Moura
de Itinerário Poético


COMO A NOITE DESCESSE...



Como a noite descesse e eu me sentisse só, só e desesperado
 diante dos horizontes que se fechavam
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora! e vi logo
só as estrelas é que me entenderiam.

Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
- É por aqui!

Onde, entretanto, quem me dissesse
ao espírito cego:
- Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
- Ó doce e incorruptível Aurora...

se só as estrelas é que me entenderiam? 

Emílio Moura,
de Itinerário Poético



FIM DE JORNADA


 
Caminhar ao encontro da noite.
Como o camponês regressa ao lar.
Após um longo dia de verão.
 
Sem pressa ou cuidado.
Na tarde ouro e cinza.
Sozinho entre os campos lavrados.
E as colinas distantes.
 
Caminhar, ao encontro da noite.
Sem pressa ou cuidado.
A noite é somente uma pausa de sombra.
Entre um dia e outro dia.
 
 
Helena Kolody,
in Vida Breve


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A TARDE CAI LENTAMENTE




Como quem olha pela última vez o destino
das sombras, a tarde cai, lentamente,
retomando aromas e sons
que a claridade do dia preteriu.
É, então, que ressaltam as emoções,
desordenadamente guardadas no peito
e os pássaros voam, quase loucos,
à procura do sol.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005



NOCTURNO




Desprotegida a noite foi assaltada por memórias
Azul profundo
Carmim
Amarelas
Seus braços abertos se encheram de sono
Seu cabelo solto de vento
Seus olhos de silêncio.

 Odysseus Elytis
 -Sete Nocturnos (5)


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

''SONETO DA TARDE''




Não digo que o sol pare, nem suplico
que teu cabelo não se faça branco.
Nos segredos serenos que fabrico
vive um pouco de mago e saltimbanco.

mas te desejo simples, natural,
e que o dia na tarde amadureça.
Venceste muita noite e temporal.
Confia em que outra vez ainda amanheça.

O teu reino da infância sempre aberto
guarda o campo e os brinquedos infinitos
nas cores puras, sob o céu coberto.

Nos cajueiros, os pássaros... Os gritos
infantis... Mas a ronda neles nasce
e embranquece o cabelo em tua face.

Odylo Costa Filho
in: Boca da Noite'

sábado, 20 de dezembro de 2014

PÔR DO SOL




É sempre comovente o pôr do sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

AURORA SOBRE O MAR DESCONHECIDO



 
Mãos brancas(meras mãos sem corpo e sem braços)
Acariciando um negro veludo...
Os olhos do guerreiro visto por cima do escudo
 
(Cartas de luto sobre regaços)
E nunca desfraldado o estandarte 
De modo a ver-se que cores e imagens tem...
Mãos sem lágrimas,mãos que nunca seriam de mãe...
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!
 
Dói púrpuras o silêncio, e que lírios a hora!
E nos tabernáculos das ocasiões um rito de timbres colora
os vitrais das passadas desilusões...
 
Cessou no Oposto o ruído de vagas batalhas
Ficou todo o espaço sendo, com túmulos(brancos)a Hora,
Um suspirar de guizos, com fímbrias de falhas...
 
Abrem-se de par em par impossíveis portões
E desabrocha a ira nos olhos de Artur
Dos vultos, na sombra, de leões...
 
Mas os dias acontecem oráculos neutros
E não há rituais, Princesa, senão de imperfeições...

 
Fernando Pessoa
In Poesia - 1902-1917


POENTE



 
A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.
 
Não me toques, fales,olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...
 
Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.
 
Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,
 
Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, iriado
De ti, mancha nesta calma
 
Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.
 
Fernando Pessoa
In Poesia
 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

"TANTA TRISTEZA NAS ÁGUAS ..."




Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

CANÇÃO DO EXÍLIO




Alma,
Pássaro solitário,
como é difícil abranger-te !
Nem sei como defender-te,
incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
visitas todas as terras,
e te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

Dantas Mota
In Planície dos Mortos


terça-feira, 25 de novembro de 2014

AINDA ME CAUSA ESPANTO A MADRUGADA




Entre mim e o mar
ainda me causa espanto a madrugada.
Sempre diferente. Sempre idêntica.
Tons de mel, de romã,
de diamante, de milho seco.
Sopro de sal, de sangue, de limos.
E, por trás das dunas,
a respiração dos amantes
sobressaltando as aves.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

COMO UMA FLOR VERMELHA





À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Poesia


sábado, 8 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO




[...] Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à
 mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo 
ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa 
externa, que não está em meu poder alterar. Ah, 
quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem
 em coisas, não para me substituírem a realidade,
 mas para se me confessarem seus pares em eu os
 não querer, em me surgirem de fora, como o
 elétrico que dá a volta na curva extrema da rua,
 ou a voz do apregoador noturno, de não sei que
 coisa, que se destaca, toada árabe, como um
 repuxo súbito, da monotonia do entardecer![...]

Bernardo Soares
Do Livro do Desassossego


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

AO SOL-PÔR



Eu canto no crepúsculo... A Tristeza
recorda-me longínqua aspiração,
na qual pressinto a imagem da beleza
que os meus olhos, um dia, alcançarão...

A paisagem, na sombra, sonha e reza...
Seu vulto é de fantástica visão.
Dir-se-á que a empedernida Natureza
tem lágrimas a arder o coração.

E canto a minha mágoa; vou cantando...
E vou, saudoso e pálido, ficando
mais distante de mim, mais para além...

Nesta melancolia, que é chorar
sem lágrimas, eu vivo a meditar
no que me prende... a terra, o céu, alguém?

as ilusões da minha mocidade.

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

IMAGEM




És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d'água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...

A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...


Manuel Bandeira
In A Cinza das Horas



FELICIDADE




A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece,
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro de extinto gozo
De uma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre,descansa...

E enquanto a mansa tarde agoniza,
Por entre a névoa fria do mar
Toda a minhalma foge na brisa:
Tenho vontade de me matar!

Oh, ter vontade de se matar...
Bem sei é cousa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

- Vem, noite mansa...


Manuel Bandeira
In O Ritmo Dissoluto

SUGESTÕES DE CREPÚSCULO




Estranha voz, estranha prece 
Aquela prece e aquela voz, 
Cuja humildade nem parece 
Provir do mar bruto e feroz; 

Do mar, pagão criado às soltas 
Na solidão, e cuja vida 
Corre, agitada e desabrida, 
Em turbilhões de ondas revoltas; 

Cuja ternura assustadora 
Agride a tudo que ama e quer, 
E vai, nas praias onde estoura, 
Tanto beijar como morder... 

Torvo gigante repelido 
Numa paixão lasciva e louca, 
É todo fúria: em sua boca 
Blasfema a dor, mora o rugido. 

Sonha a nudez: brutal e impuro, 
Branco de espuma, ébrio de amor, 
Tenta despir o seio duro 
E virginal da terra em flor. 

Debalde a terra em flor, com o fito 
De lhe escapar, se esconde — e anseia 
Atrás de cômoros de areia 
E de penhascos de granito: 

No encalço dessa esquiva amante 
Que se lhe furta, segue o mar; 
Segue, e as maretas solta adiante 
Como matilha, a farejar. 

E, achado o rastro, vai com as suas 
Ondas, e a sua espumarada 
Lamber, na terra devastada, 
Barrancos nus e rochas nuas... 

Vicente de Carvalho
In ‘Poemas e Canções’ (1908)



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

MANHÃ




Alta alvorada. — Os últimos nevoeiros
A luz que nasce levemente espalha;
Move-se o bosque, a selva que farfalha
Cheia da vida dos clarões primeiros.

Da passarada os vôos condoreiros,
Os cantos e o ar que as árvores ramalha
Lembram combate, estrídula batalha
De elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores
Crescem, vão se fundindo aos esplendores
Da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente
O sol põe-se a tocar bizarramente
Fanfarras marciais, trompas de caça.

Cruz e Souza