quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

BELO BELO




Belo belo belo 
Tenho tudo quanto quero, 
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios, 
E o risco brevíssimo — que foi? Passou — de tantas estrelas cadentes. 

A aurora apaga-se, 
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. 

O dia vem, e dia a dentro 
Continuo a possuir o segredo grande da noite. 

Belo belo belo, 
Tenho tudo quanto quero. 

Não quero o êxtase nem os tormentos, 
Não quero o que a terra só dá com trabalho. 

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: 
Os anjos não compreendem os homens. 

Não quero amar, 
Não quero ser amado. 
Não quero combater, 
Não quero ser soldado. 

— Quero a delicia de poder sentir as coisas mais simples. 

- Manuel Bandeira, 
em "Lira dos cinquent’anos",

AO CREPÚSCULO



O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo 
Que me adoça o pesar de estar em terra estranha. 
E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo, 
Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo, 
Fitando no horizonte a linha da montanha. 

A montanha é tranqüila e forte, e grande e boa. 
Ela afaga o meu sonho. E alegra-me pensar 
(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!) 
Que tu, na doce paz da tarde que se escoa, 
Teces o mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar. 

Embalada na voz do grande solitário, 
Tu mortificarás teu casto coração 
Na dor de revocar o noivado precário. 
(Ah, por que te confiei o meu desejo vário? 
Por que me desvendaste a tua sedução?) 

Se nos aparta o espaço, o tempo — esse nos liga. 
A lembrança é no amor a cadeia mais pura. 
Tu tens o grande Amigo e eu tenho a grande Amiga: 
O mar segredará tudo o quanto eu te diga, 
E a montanha, dir-me-á tua imensa ternura.

- Manuel Bandeira, 
em "A cinza das horas",

PAISAGEM NOTURNA



A sombra imensa, a noite infinita enche o vale . . .
E lá do fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
— Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua . . . 
Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande e doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua . . .
E cadentes, metálicos, pontuais,
Os tanoeiros do brejo,
— Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa 
Das serranias.

O plenilúnio via romper ... Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliqüescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, 
Fazendo levantar a fronte 
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas consciências medrosas 
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
— A Lua
Assoma à crista da montanha.
Em sua luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam . . .

Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam 
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longe das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros 
Quando, 
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranqüilos ruminando . . . 
Assim a névoa azul paira sonhando . . .
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos. 
                                           E o luar úmido . . . fino . . .
Amávico . . . tutelar . . .
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes . . ."

- Manuel Bandeira


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

CANTATA VESPERAL



CERRAI-VOS, OLHOS, que é tarde, e longe,
E acabou-se a festa a festa do mundo:
Começam as saudades hoje.

Longos adeuses pelas varandas
Perdem-se; e vão fugindo em mármore
Cascatas céleres de escadas.

Pelos portões não passam mais sombras,
Nem há mais vozes que se entendam
Nas distâncias que o céu desdobra.

As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
Sem esperanças de endereços.

Cecília Meireles
In Retrato Natural

domingo, 24 de fevereiro de 2013

POEMA DA TARDE



 A tarde move-se entre os galhos das minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim do meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:

E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.


Murilo Mendes

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

POEMETO MATINAL



O ar da manhã beija a minha face
A minha alma beija o ar leve da manhã
e olha a paisagem longíngua da cidade
que branqueja alegremente na distância
e sorri humanamente
um sorriso branco no caiado das casas
que montam os flancos das colunas azuis
e espiam pelos olhos escancarados das janelas.

7 horas. Vai começar a função.
O despertador das sirenes fura liricamente
o silêncio doirado da manhã.
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez
e esfrega os olhos deslumbradamente...

Meu Ford fordeja dentro da manhã
e sobe a rua velha do meu bairro,
arquejando, bufando, fumando gasolina.
Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso.
O ar leve beija o radiador
e beija a minha face.

A beleza de todo o meu ser
na doirada névoa desta manhã!

Abgar Renault


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

TARDE



Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.

vasant abaji dahake
(índia, n. 1942)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

UM SORRISO



Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto.
A sombra já enoitava as moitas. A umidade
aveludada de musgo. E tanta suavidade
Havia, de fazer chorar nesse sol-posto.

A viração do oceano acariciava o rosto
como incorpóreas mãos.Fosse mágoa ou saudade,
Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.
- Foi então que senti sorrir o meu desgosto...

Ao fundo do mar batia a crista dos escolhos...
Depois o céu...e mar e céus azuis: dir-se-ia
Prolongarem a cor ingênua de teus olhos...

A paisagem ficou espiritualizada.
Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia
Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada...

Manuel Bandeira
In A Cinza das Horas

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

CREPÚSCULO



Na hora em que o dia
não é mais dia
em que a noite não
é noite ainda
tudo é magia
e o céu parece
veludo furta cor
escorrendo
das mãos vazias.

Roseana Murray,
Poemas de céu

domingo, 10 de fevereiro de 2013

MIA COUTO


"Eis o que eu aprendi
nesses vales
onde se afundam os poentes:
afinal, tudo são luzes
e a gente se acende é nos outros.
A vida é um fogo,
nós somos suas breves incandescências."


Mia Couto,
 In: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

NOITE ESCANDINAVA


Num instante,
o tecto se torna céu
e o escuro se torna leito.
A noite é escassa
para tanta saudade.

MIA COUTO,
in "Tradutor de chuvas"

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

MANHÃ NO CAMPO



Estendo os olhos pelo prado afora:
Verdura e flores é o que a vista alcança...
— Bendito oásis onde o olhar descansa
Quando saudades do Passado chora.

Escuto ao longe uma canção sonora.
Voz de mulher ou, antes, de criança
Entoa o hino branco da Esperança,
Hino das aves ao nascer da Aurora.

Por toda parte risos e fulgores
E a Natureza desbrochando em flores,
Iluminada pelo Sol risonho,

Recorda um'alma diluída em prece,
Um coração feliz que inda estremece
À luz sagrada do primeiro sonho!

Auta de Souza

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

ENCONTRO DE DUAS MÃOS



Encontro de duas mãos 
que procuram estrelas,
nas entranhas da noite!

Encontro de duas mãos


Juan Ramon Jimenez

domingo, 3 de fevereiro de 2013

A COMPANHEIRA




A  lua parte com quem partiu e fica com quem ficou. E,
pacientemente, consoladoramente, aguarda os suicidas
no fundo do poço.

Mario Quintana
In: Sapato Florido