sexta-feira, 28 de setembro de 2012

VIAGEM NAS CORES



Penetraremos no azul e no vermelho.
Mais que a abelha na flor,
nossos olhos viajarão pelos reinos das cores:
nesses campos e oceanos de safira e rubi.

Conheceremos a surda profundidade,
o peso do brilho, da luz contidos no vermelho e no azul.
É outro mundo, de outubro sol, com densidades de água e veludo.
Iremos, de horizonte em horizonte,
Iremos pelo sufocado fogo dos cintilantes tapetes.

(Quando nossos olhos voltarem, seremos, no cotidiano crepúsculo,
como pássaros e sereias
orvalhos de estrelas e ondas
e caídos na areia fosca.)


Cecília Meireles
In: Poesia Completa

ANUNCIAÇÃO



Toca essa música de seda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.

E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa música de seda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.

Cessará essa música de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.

Cecília Meireles,
in Viagem

AINDA AGORA É MANHÃ



Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas.

José Saramago
In Provavelmente Alegria

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

AQUI TERMINA O CAMINHO



Os sinos cantando, as sombras, todas se diluindo
dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.
Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,
aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.

Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbaram
e que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei pra onde...

Debalde esperarás que o eco de teus passos acorde os espaços que já não tem voz.

As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre de espera,
nenhum.

Emilio Moura,
in Permanência da poesia

terça-feira, 25 de setembro de 2012

OUVINDO O PÁSSARO



Às vezes, um pássaro parece cantar
para si próprio. Está na árvore, quando
o dia nasce, e a luz encontra-o
no meio da sombra. «Que manhã é esta,
pensa, em que o sol vem ter comigo
como se não houvesse mais ninguém
para o receber?» E saúda-o
com o seu canto, sem saber que
alguém o ouve, por trás dos arbustos,
e recolhe o que ele diz
para o dizer ao mundo.


Nuno Júdice

CREPUSCULAR



A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.

Nuno Júdice

O MOMENTO DIVINO




Quando o crepúsculo caiu,
foi que notaste como as coisas todas são infinitas...

Quando o silêncio te envolveu,
foi que sentiste as pulsações mais profundas do teu ser...
ser, aquilo que está dentro da casca, na interioridade.

E então sonhaste
que o sangue te batia nas artérias
ainda sob o impulso primordial
do Instante da criação...

E que o teu peito ofegava
ainda sob cansaço
das migrações dos povos ancestrais...

E te pareceu que chegavas do fundo dos tempos
como um esclarão das gerações inumeráveis,
que viesse explorando a estrada indefinida,
e ao fim da caminhada
trouxesse ainda nos olhos
a mesma interrogação ansiada
da partida...

E te pareceu que respiravas
ao ritmo das marés montantes e vasantes
ao ritmo das montanhas,
ao ritmo do arfar da Terra toda,
quando mais pesa sobre ela, pela noite,
a mudez do infinito ardendo de astros!...

Tasso da Silveira

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

MANOEL DE BARROS


“Senhor, ajudai-nos a construir a nossa 
casa com janelas de aurora e árvores no 
quintal.Árvores que na primavera fiquem
cobertas de flores e ao crepúsculo fiquem
cinzentas como a roupa dos pescadores.”

Manoel de Barros

AQUELA TRISTE E LEDA MADRUGADA



Aquela triste e leda madrugada, 
Cheia toda de mágoa e de piedade, 
Enquanto houver no mundo saudade 
Quero que seja sempre celebrada. 

Ela só quando, amena e marchetada, 
Saía, dando ao mundo claridade, 
Viu apartar-se d’ua outra vontade, 
Que nunca poderá ver-se apartada. 

Ela só viu as lágrimas em fio, 
Que duns e doutros olhos derivadas, 
S’acrescentaram em grande e largo rio; 

Ela viu as palavras magoadas, 
Que puderam tornar o fogo frio 
E dar descanso às almas condenadas.

Luis Vaz de Camões

PARA UMAS NOITES QUE ANDAM FAZENDO



" deixa eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem

quem sabe a lua lua 
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém

deixa ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém "


Paulo Leminski





SOLIDÃO



O espirito da tempestade que executa a minha palavra
Partiu 
E minha forma assim abandonada
Caiu.
Vieram depois a aflição e a agonia
E cresceram em mim
Como a aurora e o dia.
E se eu quisesse contar, homens irmãos,
Desde quando meu coração está isento de alegria,
Acreditem,
Não poderia.
Há muitos séculos mora em mim
Uma noite muito escura, muito fria 


Adalgisa Nery
In: Mundos Oscilantes

domingo, 23 de setembro de 2012

UM POEMA QUE LI OUTRORA



A madrugada, fresca e linda,
rompendo as trevas, encontrou
a Natureza adormecida ainda.

Súbito, uma ave, num pipilo
límpido e claro, despertou
a árvore enorme que lhe dera asilo...

E a árvore, comovida,
transmitiu à floresta secular
o doce frêmito de vida.

E floresta levou-o ao céu distante,
e o céu mandou-o ao mar...

E, assim, no deslumbramento desse instante,
toda a Terra, a florir, pôs-se a cantar!...


Tasso da Silveira
in Poemas

PLENITUDE



A pedra, o vento, a luz alteada, 
o salso mar eterno, o grito 
do mergulhão, sob o infinito 
azul: 

— Deus não me deve nada. 


Hélio Pellegrino

FIM DE OUTONO



Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Tudo seco pelas hortas,
Grandes lágrimas no chão
Nem uma flor pelos montes,
Tudo numa quietação
Soluça numa oração
O triste cantar das fontes.

Fim de outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...
A terra fechou as portas
Aos beijos do sol ardente,
E agora está na agonia...
Valha à terra agonizante
A Santa Virgem Maria!

Fim de Outono... Folhas mortas...
Sol doente... Nostalgia...

Fernanda de Castro

SUAVE É A TARDE



Nesga de nuvem
Bem leve, leve
Formato breve
Paira no ar

Por trás o sol
Poente, belo
Sem um anelo
Morre no mar

Suave é a tarde
Cheirosa a brisa
Macia, a relva
Me faz sonhar.

José Magno

OLHAS O AMANHECER



Olhas o amanhecer,
vives o amanhecer como o único instante
em que o céu é entreaberto segredo de um deus mudo.

Espera: algo vai se revelar e deves estar pronto
para mergulhar teu sonho num poço de luz casta.

O intocado te espera. E amanhece. E te iluminas
como se trincasses com os dentes a polpa do absoluto.

Alphonsus de Guimaraens Filho,
in Luz de Agora 

O CONSEHO DAS ÁRVORES



Sofro, luz dos meus olhos, quando dizes
Que a vida não te alenta nem conforta.
Olha o exemplo das árvores felizes
Dentro da solidão da noite morta.

Que lhes importa a dor, que lhes importa
O drama que há no fundo das raízes?
Não sentem quando o vento os ramos corta
E as folhas leva em várias diretrizes?

Que lhes importa a maldição do outono
E os dedos envolventes da garoa,
Se dão sombra às taperas no abandono?!...

Levanta os braços para o firmamento
E canta a vida porque a vida é boa
Mesmo esmagada pelo sofrimento.

Olegário Mariano

O SILÊNCIO



Ouça, meu filho, o silêncio.
É um silêncio ondulado,
um silêncio
em que resvalam vales e ecos
e inclina a fronte
para o chão.

Federico Garcia Lorca

DELORES PIRES



Entre o nevoeiro
escondendo-se do sol
cochila o pinheiro.

Delores Pires
in Estações

BRISA VESPERTINA



Brisa vespertina
amarelecendo o verde.
Outono pintando.

Delores Pires
in Pétalas de Ipê

TEMPO DE SILÊNCIO



Era o tempo do silêncio.
Com toda a paciência
a hora amadureceu
a ausência dos pássaros
a serenidade das árvores.
Crianças desataram
os nós dos ventos.
Crisântemos choraram
sob as crinas do tempo.
Era a hora da despedida.
Com todo o cuidado
ele acariciou-lhe o rosto
beijou-lhe os olhos.
Ele a abraçou
como quem acalanta
nos braços
um recém-nascido.
Era o tempo do ocaso.
Namorados colheram
os sorrisos da tarde.
Frutos tombaram
sobre as lágrimas da terra.
Era a hora do amadurecimento.
Com toda a ternura
ele desprendeu-se
daqueles cabelos de jasmim
desatou-se
daquele corpo de orvalho.
Ele despediu-se
de sua própria face
disse adeus ao próprio nome
e desnudo de si mesmo
afastou-se em direção ao outono
perdeu-se na amplidão
sem sequer voltar-lhe o rosto.
Era o tempo do silêncio.

Alexandre Bonafim

RARA TEXTURA



Solidão e silêncio
permitem o encontro
que espelha,
no chão do meu rosto,
o Tempo,
o lamento das perdas,
o afago das mãos
que amarram,
presente e passado
em único cesto.

Solidão e silêncio
afligem o vento
que enreda
o vão do meu corpo.

O vento, o alento dos versos,
a alvorada das horas:
presente e futuro
em perene segundo texto.

*Jairo De Britto, em
"Dunas de Marfim".

POETA DE UMA NOTA SÓ



Há dias
(muito escuros)
em que me surpreendo a lembrar
autores de uma música só,
escultores de uma estátua só,
pintores de uma tela só.

Há dias
(muito escuros)
em que deprimo ao me ver
poeta de um poema só!

Edival Perrini, em
poemas do amor presente

HORA DA SAUDADE




A tarde se esvai
lentamente
esgarçando suas luzes
em infinitos cristais
a tarde se esvai
e na alma fica um silêncio
de sinos mudos
uma espera ansiosa
de estrelas
uma saudade fininha
de não se sabe o quê.

Roseana Murray 

sábado, 22 de setembro de 2012

CIMO




A hora da tarde, a que põe
seu sangue nas montanhas.

Alguém nesta hora está sofrendo;
com angústia alguém perde
ao pôr do sol o único peito
contra o qual se estreitava.

Um coração existe em que molha
a tarde aquele cimo ensangüentado.

O vale já está na sombra
e se cobre de calma.
Olham porém, da profundeza, o incêndio
que enrubesce a montanha

Eu me ponho a cantar sempre nesta hora
minha invariável canção atribulada.

Serei eu a que banha
o cume de escarlate?

Levo a meu coração a mão e sinto
que uma ferida sangra.


Gabriela Mistral,
Tradução de Henriqueta Lisboa

CREPUSCULAR





Poente no meu jardim. . . O olhar profundo
Alongo sobre as arvores vazias,
Essas em cujo espírito infecundo
Soluçam silenciosas agonias.

Assim estéreis, mansas e sombrias,
Sugerem à emoção com que as circundo
Todas as dolorosas utopias
De todos os filósofos do mundo.

Sugerem. . . Seus destinos são vizinhos:
Ambas, não dando frutos, abrem ninhos
Ao viandante exânime que as olhe.

Ninhos, onde vencidas de fadiga,
A alma ingênua dos pássaros se abriga
E a tristeza dos homens se recolhe. . . 

Raul de Leoni,
In: Luz Mediterrânea

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

HORA AZUL



Hora azul. No parque, o ocaso
tem sugestões de pintura.
Crescem as sombras e a alvura
dos cisnes, no tanque raso.

O velho jardim de luxo
parece um vaso de aromas.
Harmonias policromas
sobem d'água do repuxo.

A tarde cai dos espaços
como uma flor, a um arranco
do vento, cai aos pedaços.

E a noite vem... No jardim,
o luar, como um pavão branco,
abre a cauda de marfim.

Onestaldo de Pennafort 

PAZ



Paz,
como as manhãs
resplandecentes,
assanhadas
pra iluminar
caminhos.


Paz,
no silêncio
dos ninhos,
esperança agasalhada
dos espinhos.

Paz,
no balanço da brisa,
fazendo carinhos
na flor.

Paz,
no sorriso da criança,
na noite solteira,
à espera do amor.

Ivone Boechat

EVOCAÇÃO



Quando nasce amanhã cheia de graça
E a beleza da mata se irradia
Com o cantar da passarada
Surgem tênues raios de luz.
E o sol, ao longe, desponta.
É a alvorada que surge,
O doce e alegre amanhecer!

Olympiades Guimarães Corrêa
Em Neblina do Tempo-

DENTRO DA TARDE



A tarde põe as tristes mãos de seda,
ermas de jóias e de pedraria
sobre o cabelo de ouro da alameda
sonolenta de maio e fim de dia
a tarde põe as tristes mãos de seda.
O mistério do outono embala tudo
no silêncio de seu recolhimento;
e as mãos da tarde, suaves, de veludo,
descem do céu, num gesto longo e lento,
ermas de jóias e de pedraria.
Um par de lábios, trêmulos, fugazes,
perfumados de sombra e de desejo,
depõem, numa carícia de lilases,
a religiosa unção de um grande beijo
sobre o cabelo de ouro da alameda.
E esta fica a sonhar, como quem sonha
um infinito sonho de saudade,
numa quietude mística e tristonha,
sob o incenso da meia-claridade,
sonolenta de maio e fim de dia...


Alceu Wamosy

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

RUMOR



Como é forte o rumor da madrugada!
Feito de coisas mais que de pessoas.
Precede-o às vezes um sibilo breve,
alegre voz que ao dia desafia.
Depois, tudo é submerso na cidade.
E a minha estrela é aquela estrela pálida
da morte devagar, sem desespero.

Sandro Penna,
in poesia do século XX

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

EU NÃO O TINHA OLHADO



Eu não o tinha olhado e nossos passos
soavam juntos.

Nunca escutei sua voz e minha voz ia
enchendo o mundo.

Houve um dia de sol e minha alegria
em mim não coube.

Senti a angústia de carregar a nova
solidão do crepúsculo.

Senti-o junto a mim, braços ardendo,
limpo, sangrante, puro.

Dentro da noite negra a minha dor
entrou no coração.

E vamos juntos.


Pablo Neruda

EM VIAGEM



Arde a montanha
- brasa de ametista –
atravessada de sol

O grande crepúsculo
é um calmo incêndio
que se espalma
na redoma da tarde

Os laranjais
- surdo perfume –
se preparam
para acolher a noite


Hélio Pellegrino
In: Minérios Domados

A ROSA É UM JARDIM



A rosa é um jardim
concentrado
um clarim
de cor, anunciando
a alvorada fogosa
e o tempo iluminado.

Carlos Drummond de Andrade
In Discurso de Primavera e Algumas Sombras

terça-feira, 18 de setembro de 2012

HAICAI



Horizonte em brasa.
Pássaro voa sereno.
As nuvens passeiam.

Delores Pires
in Pétalas de Ipê

TRANSFIGURAÇÃO



Numa luz verde, velada,
contra o céu de opala e nácar,
os arranha-céus,
ao anoitecer,
são estalagmites
em gruta de bruma,
onde gotejam estrelas.

Helena Kolody
in Viagem no Espelho

ANOITECER



A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora
Tenho bênçãos d'amor pra toda a gente!
Como eu sou pequenina e tão dolente
No amargo infinito desta hora!

Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho! 
Meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho... 
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive... 

Florbela Espanca

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

ANULAÇÃO



Ocupar o espaço
contido na sombra,
ser o pó do espesso,
o vão da penumbra,

o dó sem começo,
o nó sem vislumbre,
o invisível traço
do não-ser: escombro.

Ser zero, ou nem isso:
letra morta, timbre
do vazio no osso.

Ser aquém do nome
— o só do soluço
de coisa nenhuma.

Gilberto Mendonça Teles

TEIXEIRA DE PASCOAES



O incêndio do sol-pôr exala um fumo roxo
Que ás cousas vela a face...
A macerada flor da solidão renasce;
O seu perfume é fria e branda mágoa,
Bruma que já foi água...
Todo sombra e luar esvoaça o mocho;
Uma nuvem enorme, ao longe, no poente
Desvenda o coração que se deslumbra
E abrasa intimamente...
O silencio a crescer, é onda que se espalha...
Sente-se vir o outono; é já noitinha, orvalha...
Nos ermos pinheirais gemem as _noitibós_
E vultos de mulher, sumidos na penumbra,
Passam cantando, além, com lagrimas na voz...


Teixeira de Pascoaes
in "Elegia da solidão" 

A IMPLACÁVEL COLHEITA



Quando criança, roubaram-lhe
(em nome da cara boa conduta)...
o direito à Alegria. Ele resistiu.

Quando jovem, roubaram-lhe
(em nome da ordem e progresso)
o direito à Rebeldia. Ele revidou.

Quando adulto, roubaram-lhe
(em nome do mais querido Ter)
o direito de Ser. Ele assentiu.

À meia idade, roubaram-lhe
(em nome dos bons costumes)
o sagrado Querer. Ele aceitou.

Quando completou seus 80 anos,
(aniversariante obediente ao rito)
viu o quê permitiu! Ele perdeu.

Ele, atônito fantasma de si à deriva:
que nada a ninguém pediu e culpa.
Ele, dono do Tempo agora inútil.
Ele, só – diante do horror do não-Ser!


*Jairo De Britto,
em “Dunas de Marfim”

QUANDO EU PARTIR...



Quando eu partir, quando eu partir de novo,
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre lhe abrisse
As janelas da vida...
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão-de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão-de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre.
Mas ali
Hei-de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei-de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre

Ruy Cinatti
In Nós Não Somos deste Mundo

domingo, 16 de setembro de 2012

A AURORA...



..."A aurora chegou vestida de
cor-de-rosa, passou pela vidraça,
passou através de minhas pálpebras,
acordou meus olhos. Mas não me
acordou a alma, que ficou dorme-
não-dormindo, boba e semi-
iluminada..."
 
Paulo Mendes Campos 

CONFISSÃO


 
De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.
 
Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.
 
NUNO JÚDICE,
in Meditação sobre Ruínas

POEMA-2



Atravesso o jardim, de manhã,
até beber o último trago de névoa.
 
As estátuas empurram-me com
os seus braços brancos.
 
Um cisne confunde-se
com um jarro;
 
mas não sei se o lago
se confunde com ele.
 
No banco, um fantasma
estende-me uma chávena de café.
 
No fundo, discutimos ambos
um problema de existência.
 
É que nem ele nem eu
temos a certeza um do outro
 
quando a cidade, no Outono,
se veste de nuvem.

 
NUNO JÚDICE,
in O Movimento do Mundo

PARA A MANHÃ



Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste... 
 
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade? 
 
Acordaste e és bela:
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado. 
 
Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!

 
Miguel Torga

AVE DA ESPERANÇA


 
Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.


Miguel Torga
In Obra Completa 

LUZ CADENTE



Serão miragens
aqueles tons em cobre
ondulando em folhas na tarde?
Meus olhos devem andar poéticos
ou delirantes.
ou mais febril a minha percepção
que entende
que os animais atendem
às nuances que aquela luz poente concede.
Luz e folha devem ter naturezas atadas 
em delicado, intraduzível elo
que traça o pássaro ao ninho.
Não sei.
O que para as aves deve ser
algo como arbóreas núpcias
em mim
é um degredo em ecos,
um vago ruflar de um sentido.
 
Minha razão nada pode
contra a luz cadente
que vela e desvela
aquele tom amêndoa 
- ferrugem quase dor, 
quase leve -
que a alma agora consente.
E que de volta 
à presciência do mundo, 
ao ninho da terra 
vai me cumprindo.

 
Fernando Campanella 

PARA QUE VENHAM



Uma só vela basta. Sua luz mortiça
Uma atmosfera mais propícia há de compor,
Quando as sombras vierem, as sombras do amor.
 
Uma vela somente. Que esta noite o quarto
Muita luz não ostente. Entregue ao devaneio,
E às sugestões do ambiente, e dessa luz tão pouca
Ao devaneio assim entregue, hei de sonhar,
Para que as sombras venham, as sombras do amor.

 
Konstantinos Kaváfis

CORCOVADO



Montanha ilustre
límpida no cristal da madrugada,
escorrendo ouro fluido
nas grandes horas acesas,
serena e distante no crepúsculo
transfigurada, na noite
em mágico Thabor.

Não conhecem o teu total esplendor
os que não viram, como eu vi,
descerem as estrelas
e dançarem, perdidas,
em torno ao teu cristo branco
uma ronda sem tempo.


Tasso Da Silveira
in Poemas de Antes 

ASAS



O que torna mais triste o céu sangrento
ao pôr-do-sol, são as partidas, são
os adeuses dos pássaros ao vento,
numa incerta e fugaz palpitação.

Ah! Quantas vezes, no apressado ou lento
voejar de aves que vêm e aves que vão,
tocam-se duas asas um momento
e afastam-se em contrária direção . . .

Também os nossos corações, um dia,
se encontraram: no ocaso rubro ardia
o incêndio dos amores imortais.

E - asas, na tela acesa do sol poente -
um no outro eles roçaram levemente,
para não se encontrarem nunca mais!

Heitor Lima