sábado, 27 de setembro de 2014

A MONTANHA




Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
De um vago sussurrar de ladainha,
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha:

Rezas sobre os desertos e as areias,
Sobre as florestas e a amplidão marinha;
E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias,
Mudas servas aos pés de uma rainha.

Ardes, num holocausto de ternura...
E abres, piedosa, a solidão bravia
Para as águias e as nuvens, a colhe-las;

E invades, como um sonho, a imensa altura,
- Última a receber o adeus do dia,
Primeira a ter a bênção das estrelas!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)



O VALE



Sou como um vale, numa tarde fria,
Quando as almas dos sinos, de uma em uma,
No soluçoso adeus da ave-maria
Expiram longamente pela bruma.

É pobre a minha messe. É névoa e espuma
Toda a glória e o trabalho em que eu ardia...
Mas a resignação doura e perfuma
A tristeza do termo do meu dia.

Adormecendo, no meu sonho incerto
Tenho a ilusão do prêmio que ambiciono:
Cai o céu sobre mim em pirilampos...

E num recolhimento a Deus oferto
O cansado labor e o inquieto sono
Das minhas povoações e dos meus campos.


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


CICLO




Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!

Dia. A flor, - o noivado e o beijo, como
Em perfumes um tálamo e um altar:
A árvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!

Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! saudade!... A dolorosa rama
Da árvore aflita pelo chão derrama
As folhas, como lágrimas... Lembrar!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

HINO À TARDE




Glória jovem do sol no berço de ouro em chamas,
Alva! Natal da luz, primavera do dia,
Não te amo! Nem a ti, canícula bravia,
Que a ti mesma te estruis no fogo que derramas!

Amo-te, hora hesitante em que se preludia
O adágio vesperal, - tumba que te recamas
De luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,
Moribunda que ris sobre a própria agonia!

Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entre
Os primeiros clarões das estrelas, no ventre,
Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,

Trazes a palpitar, como um fruto do outono,
A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada...


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

NO BANCO DE JARDIM





No Banco de jardim
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.

No banco do jardim.
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.

No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.


Carlos Drummond de Andrade
In 'Poesia Completa'

PROCURANDO ESTRELAS



Faz frio! vou em busca de agasalho, 
oh! lágrimas... (e luto por contê-las!) 
olhos abertos, procurando estrelas, 
sigo, e na estrada, minha mágoa espalho. 

As flores choram lágrimas de orvalho, 
lágrimas vivas, trêmulas e, ao vê-las, 
vejo toda a criação chorando pelas 
folhas a balançar em cada galho. 

Sigo tristonho... Baila pelo espaço 
o lamento das cousas que ficaram 
sem um amor, sequer, para entendê-las. 

Deixo um pouco de dor por onde passo... 
Paro. Olho o céu. As mágoas debandaram 
ante o esplendor do riso das estrelas!


Lago Burnett 
In Estrela do Céu Perdido, l949

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

MANHÃ




Fresca manhã da vida, recomeço
Doutros orvalhos onde o sol se molha.
Nova canção de amor e novo preço
Do ridente triunfo que nos olha.

Larga e límpida luz donde se vê
Tudo o que não dormiu e germinou;
Tudo o que até de noite luta e crê
Na força eterna que o semeou.

Um aceno de paz em cada flor;
Um convite de guerra em cada espinho;
E os louros do perfeito vencedor
À espera de quem passa no caminho.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’

ENCONTRO



Quando o galo cantou na escuridão
Como um claro rumor que afasta o medo,
É que ele viu que chegara a ocasião
E que findara enfim o seu degredo.

Fosse qual fosse o dedo
Que lhe apontava a vida, era de mão
Que conhecia o mágico segredo
De negar e rasgar a solidão.

Mundo! - disse ele então, - Mundo de todos!
Mundo de estrelas, de ilusões, de lodos,
Onde nada é sozinho nem disperso:

Mundo! Sou eu aquela voz perdida,
Que vem juntar-se, arrependida,
Trazendo a humana gratidão de um verso.


Miguel Torga
in ‘Libertação’

RUMO



Rasga o pano da noite um grito agudo.
É o apelo de alguém.
Mas um aceno amargo não é tudo,
De mais a mais na bruma de onde vem.

Pode ser consciente, ou ser de quem
Sabe de gritos o que sabe um mudo.
Pode ser justo, e pode ser também
Vestido de injustiças de veludo.

Por isso, ninguém corre àquela voz.
A sua imprecisão passa veloz
Pelo caminho vago da ilusão.

Fogo que queima é fogo que se exprime.
O sentido do sangue é que redime
A angústia pendular do coração.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’

DESTINO




Acordo com os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos,
acordo sem amarras nos sentidos,
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pôde vencer a lealdade
que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.

Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira irrequieta...
- O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de ter nascido,
Antes de a sua angústia começar.


Miguel Torga

SINFONIA NATURAL




O sol se põe,
poesia.

A chuva cai,
canção.

O vento assobia,
música.

O mar sacode,
vibra.

A neve cai,
de mansinho,

silêncio.
O homem
AMA...


Delores Pires
In A Estrela e a Busca

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

SONETO V



Giram os girassóis no muro antigo
E há rubor de pitangas no quintal,
Um realejo toca um toque amigo
E a tarde agora é sino de cristal.
Sino chamando tranças e cirandas,
Risadas e pregões fora de moda,
E nuvens navegando a velas pandas,
E brisa a desfolhar canções de roda.
Ah tempos habitantes de saudade,
Horas que avós fiaram suavemente,
Vida que esconde-esconde uma cidade,
Surgindo da neblina de repente!
Caminham pela tarde os assombrados,
Esses velhos meninos naufragados!



Paulo Bomfim
in Súdito da Noite



terça-feira, 23 de setembro de 2014

TARDE DE PRIMAVERA




No céu da tarde - revoada de andorinhas.
De que sala do espaço vês
a primavera e o calor dos peitos brandos?
Canta o silêncio além do ouvido
uma nuvem perpassa tules
por entre pássaros.
O amor se lembra: beijos foram dados -
colar de pérolas desprendidas
nenhuma delas foi perdida
e um coração pulsou mais forte.
Revoada de andorinhas no céu da tarde
arde a nuvem agora e se transmuta
em canção: pássaros escutam
Voa coração, para a distância
e lembra ao distante
esta presença feita de vida e dança:
o que foi e o que é na mesma trança.

Dora Ferreira da Silva
In Cartografia do Imaginário

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

LEGENDA DOS DIAS



O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: "Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

Raul de Leoni
(1895-1926)

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

'CREPÚSCULO'




Alada, corta o espaço uma estrela cadente. 
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança. 
Paira no ar um langor de mística esperança 
E de doçura triste, inexprimivelmente. 

À surdina da luz irrompe, de repente, 
O coro vesperal das cigarras. E mansa, 
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança 
Entre nuvens de opala, a concha do crescente. 

Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando, 
Da recôndita paz das horas esquecidas, 
Vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando ... 

E, na torre do peito, em plácidas batidas,
Melancolicamente, o coração pulsando, 
Plange o réquiem de amor das ilusões perdidas. 


Martins Fontes
Verão (1917)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

MADRUGADA



Ainda há estrelas no céu, tremelicando, tontas,
e a manhã já vem vindo, indolente e indecisa,
até que o passaredo o concerto organiza
para esperar-te, ó sol, que dos longes despontas.

Um rego d'água corre e um vento brando alisa
as franças do capim ridente,em cujas pontas
o orvalho da manhã esplende como as contas
de explêndido cristal que o sol, beijando , irisa.

As aves cantam numa alegria incontida;
a terra cheia, ri-se o capinzal molhado;
e toda a natureza é um hálito de vida.

E de há muito que está o caboclo de pé,
olhando, preguiçoso, e no sonho abismado,
a fumaça a subir do rancho de sapé.


Gilberto M. Teles
Im Poesia Reunida

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A TARDE CAI LENTAMENTE



Como quem olha pela última vez o destino
das sombras, a tarde cai, lentamente,
retomando aromas e sons
que a claridade do dia preteriu.
É, então, que ressaltam as emoções,
desordenadamente guardadas no peito
e os pássaros voam, quase loucos,
à procura do sol.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

UM BRILHO QUASE FATIGADO



Anda uma claridade esquiva 
a rondar-nos a casa. 
De encontro às vidraças,
um brilho quase fatigado 
vai abrindo a noite 
à transparência do olhar.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

NOITE



Onde os vultos escurecem na exactidão do olhar 
desvanecendo a cor dos lírios 
começa o enigma da noite: 
sombra de uma sombra, 
esse outro modo de luz transfigurada.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013







SOMBRA



Vem, senhora das trevas 
trazer-nos os contornos da luz 
nos sulcos da noite 
para que a extrema alvura dos gladíolos
ponha em nossas mãos aquele brilho, 
quase divino, que só as sombras guardam 
na vertical alteração de cada hora.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013


O RIO



Onde estivermos, a madrugada
será íntima de veleiros
que transportam a voz do rio,
contemporânea de todos os silêncios.
Porém, não acredites na excessiva
vertigem da corrente.
Tanto azul, só pode ser a cor
dos pássaros marinhos,
improvisando a foz, tão devagar,
que o mar se agita rente aos ventos.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

FUGA



Era noite e o céu estava em mim.

Quando olhei para dentro de mim mesmo
-só vi o rasto de meu próprio espírito,
só ouvi o eco de meus passos perdidos. . .

Aonde fui que não me lembro?


Colombo de Sousa
In: Estágio 1964