sexta-feira, 28 de novembro de 2014

"TANTA TRISTEZA NAS ÁGUAS ..."




Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

CANÇÃO DO EXÍLIO




Alma,
Pássaro solitário,
como é difícil abranger-te !
Nem sei como defender-te,
incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
visitas todas as terras,
e te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

Dantas Mota
In Planície dos Mortos


terça-feira, 25 de novembro de 2014

AINDA ME CAUSA ESPANTO A MADRUGADA




Entre mim e o mar
ainda me causa espanto a madrugada.
Sempre diferente. Sempre idêntica.
Tons de mel, de romã,
de diamante, de milho seco.
Sopro de sal, de sangue, de limos.
E, por trás das dunas,
a respiração dos amantes
sobressaltando as aves.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

COMO UMA FLOR VERMELHA





À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Poesia


sábado, 8 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO




[...] Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à
 mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo 
ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa 
externa, que não está em meu poder alterar. Ah, 
quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem
 em coisas, não para me substituírem a realidade,
 mas para se me confessarem seus pares em eu os
 não querer, em me surgirem de fora, como o
 elétrico que dá a volta na curva extrema da rua,
 ou a voz do apregoador noturno, de não sei que
 coisa, que se destaca, toada árabe, como um
 repuxo súbito, da monotonia do entardecer![...]

Bernardo Soares
Do Livro do Desassossego


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

AO SOL-PÔR



Eu canto no crepúsculo... A Tristeza
recorda-me longínqua aspiração,
na qual pressinto a imagem da beleza
que os meus olhos, um dia, alcançarão...

A paisagem, na sombra, sonha e reza...
Seu vulto é de fantástica visão.
Dir-se-á que a empedernida Natureza
tem lágrimas a arder o coração.

E canto a minha mágoa; vou cantando...
E vou, saudoso e pálido, ficando
mais distante de mim, mais para além...

Nesta melancolia, que é chorar
sem lágrimas, eu vivo a meditar
no que me prende... a terra, o céu, alguém?

as ilusões da minha mocidade.

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)