sábado, 20 de dezembro de 2014

PÔR DO SOL




É sempre comovente o pôr do sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

AURORA SOBRE O MAR DESCONHECIDO



 
Mãos brancas(meras mãos sem corpo e sem braços)
Acariciando um negro veludo...
Os olhos do guerreiro visto por cima do escudo
 
(Cartas de luto sobre regaços)
E nunca desfraldado o estandarte 
De modo a ver-se que cores e imagens tem...
Mãos sem lágrimas,mãos que nunca seriam de mãe...
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!
 
Dói púrpuras o silêncio, e que lírios a hora!
E nos tabernáculos das ocasiões um rito de timbres colora
os vitrais das passadas desilusões...
 
Cessou no Oposto o ruído de vagas batalhas
Ficou todo o espaço sendo, com túmulos(brancos)a Hora,
Um suspirar de guizos, com fímbrias de falhas...
 
Abrem-se de par em par impossíveis portões
E desabrocha a ira nos olhos de Artur
Dos vultos, na sombra, de leões...
 
Mas os dias acontecem oráculos neutros
E não há rituais, Princesa, senão de imperfeições...

 
Fernando Pessoa
In Poesia - 1902-1917


POENTE



 
A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.
 
Não me toques, fales,olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...
 
Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.
 
Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,
 
Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, iriado
De ti, mancha nesta calma
 
Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.
 
Fernando Pessoa
In Poesia
 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

"TANTA TRISTEZA NAS ÁGUAS ..."




Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Em que reino vive agora
a princesa que vivia
na infância sob amoreiras
acesas à luz do dia?

Onde o sol, onde o tumulto
de pombas no céu ardente
onde o frio da tarde morta
entre escombros do poente?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.

Onde a lua marinheira
no alto céu que surgia –
negro mar cheio de espantos
mordido de ventanias?

Onde o Rei do reino ausente
onde a fada que fazia
do mundo um sono profundo
e do sonho a luz do dia?

Tanta tristeza nas águas
na face que refletia
o espelho frágil da lua
miragem melancolia.


Dora Ferreira da Silva
in Poesia Reunida

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

CANÇÃO DO EXÍLIO




Alma,
Pássaro solitário,
como é difícil abranger-te !
Nem sei como defender-te,
incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
visitas todas as terras,
e te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...

Dantas Mota
In Planície dos Mortos


terça-feira, 25 de novembro de 2014

AINDA ME CAUSA ESPANTO A MADRUGADA




Entre mim e o mar
ainda me causa espanto a madrugada.
Sempre diferente. Sempre idêntica.
Tons de mel, de romã,
de diamante, de milho seco.
Sopro de sal, de sangue, de limos.
E, por trás das dunas,
a respiração dos amantes
sobressaltando as aves.

Graça Pires
De: Espaço livre com barcos, 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

COMO UMA FLOR VERMELHA





À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.

Sophia de Mello Breyner Andresen,
in Poesia


sábado, 8 de novembro de 2014

EXCERTO LITERÁRIO




[...] Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à
 mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo 
ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa 
externa, que não está em meu poder alterar. Ah, 
quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem
 em coisas, não para me substituírem a realidade,
 mas para se me confessarem seus pares em eu os
 não querer, em me surgirem de fora, como o
 elétrico que dá a volta na curva extrema da rua,
 ou a voz do apregoador noturno, de não sei que
 coisa, que se destaca, toada árabe, como um
 repuxo súbito, da monotonia do entardecer![...]

Bernardo Soares
Do Livro do Desassossego


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

AO SOL-PÔR



Eu canto no crepúsculo... A Tristeza
recorda-me longínqua aspiração,
na qual pressinto a imagem da beleza
que os meus olhos, um dia, alcançarão...

A paisagem, na sombra, sonha e reza...
Seu vulto é de fantástica visão.
Dir-se-á que a empedernida Natureza
tem lágrimas a arder o coração.

E canto a minha mágoa; vou cantando...
E vou, saudoso e pálido, ficando
mais distante de mim, mais para além...

Nesta melancolia, que é chorar
sem lágrimas, eu vivo a meditar
no que me prende... a terra, o céu, alguém?

as ilusões da minha mocidade.

Teixeira de Pascoaes (1877-1952)


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

IMAGEM




És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d'água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...

A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...


Manuel Bandeira
In A Cinza das Horas



FELICIDADE




A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece,
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro de extinto gozo
De uma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre,descansa...

E enquanto a mansa tarde agoniza,
Por entre a névoa fria do mar
Toda a minhalma foge na brisa:
Tenho vontade de me matar!

Oh, ter vontade de se matar...
Bem sei é cousa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

- Vem, noite mansa...


Manuel Bandeira
In O Ritmo Dissoluto

SUGESTÕES DE CREPÚSCULO




Estranha voz, estranha prece 
Aquela prece e aquela voz, 
Cuja humildade nem parece 
Provir do mar bruto e feroz; 

Do mar, pagão criado às soltas 
Na solidão, e cuja vida 
Corre, agitada e desabrida, 
Em turbilhões de ondas revoltas; 

Cuja ternura assustadora 
Agride a tudo que ama e quer, 
E vai, nas praias onde estoura, 
Tanto beijar como morder... 

Torvo gigante repelido 
Numa paixão lasciva e louca, 
É todo fúria: em sua boca 
Blasfema a dor, mora o rugido. 

Sonha a nudez: brutal e impuro, 
Branco de espuma, ébrio de amor, 
Tenta despir o seio duro 
E virginal da terra em flor. 

Debalde a terra em flor, com o fito 
De lhe escapar, se esconde — e anseia 
Atrás de cômoros de areia 
E de penhascos de granito: 

No encalço dessa esquiva amante 
Que se lhe furta, segue o mar; 
Segue, e as maretas solta adiante 
Como matilha, a farejar. 

E, achado o rastro, vai com as suas 
Ondas, e a sua espumarada 
Lamber, na terra devastada, 
Barrancos nus e rochas nuas... 

Vicente de Carvalho
In ‘Poemas e Canções’ (1908)



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

MANHÃ




Alta alvorada. — Os últimos nevoeiros
A luz que nasce levemente espalha;
Move-se o bosque, a selva que farfalha
Cheia da vida dos clarões primeiros.

Da passarada os vôos condoreiros,
Os cantos e o ar que as árvores ramalha
Lembram combate, estrídula batalha
De elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores
Crescem, vão se fundindo aos esplendores
Da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente
O sol põe-se a tocar bizarramente
Fanfarras marciais, trompas de caça.

Cruz e Souza

AMANHECER




Navego no cristal da madrugada,
Na dureza do frio reflectido,
Onde a voz ensurdece, laminada,
Sob o peso da noite e do gemido.

Abre o cristal em nuvem desmaiada,
Foge a sombra, o silêncio e o sentido
Da nocturna memória sufocada
Pelo murmúrio do dia amanhecido.

José Saramago

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

CREPÚSCULO



Na hora em que o dia
não é mais dia,
em que a noite
não é noite ainda,
tudo é magia,
e o céu parece
veludo furta-cor
escorrendo das mãos vazias.

Roseana Murray
Poemas de Céu,

sábado, 4 de outubro de 2014

ERA UMA RUA TÃO ANTIGA...




Para Telmo Vergara

Era uma rua tão antiga, tão distante
que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada...
Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante
de quem tornasse a ver uma primeira namorada

em todo o seu feitiço do primeiro instante.
E a noite, sobre a rua, era toda estrelada...
Havia, aqui e ali, cadeiras na calçada...
E o quanto me lembrei, então, de um amigo constante,

dos que, na pressa de hoje, nem se usam mais
como essas velhas ruas que parecem irreais
e a gente, ao vê-las, diz: “Meu Deus, mas isto é um sonho!”

Sonhos nossos? Não tanto, ao que suponho...
São os mortos, os nossos pobres mortos que, saudosamente,
estão sonhando o mundo para a gente!

Mario Quintana,
De: Apontamentos de História Sobrenatural


AS ESTRELAS



Foram-se abrindo aos poucos as estrelas...
De margaridas lindo campo em flor!
Tão alto o céu!... Pudesse eu ir colhê-las...
Diria alguma si me tens amor...

Estrelas altas! Que me importam elas?
Tão longe estão!... Tão longe deste mundo...
Trêmulo bando de distantes velas
Ancoradas no azul do céu profundo...

Porém meu coração quase parou,
Lá foram voando as esperanças minhas
Quando uma, dentre aquelas estrelinhas,

Deus a guie! Do céu se despencou...
Com certeza era o amor que tu me tinhas
Que repentinamente se acabou!...

Mario Quintana,
in A cor do invisível

NOTURNO II




Pensam que estou dormindo. Mas, do meu velívolo,
eu avisto a cidade.
Em cada janela acesa (umas poucas)
um poeta, noite alta, poetando...
Tu dirás que imagino coisas loucas!
Mas era assim que eram as coisas
nos tempos da primeira mocidade... Pouso
lá na torre da igreja.
Imobilizo-me.
Vês?
(ou estarei apenas sonhando
que faço um poema?)

Mario Quintana,
in Baú de Espantos


RECORDO AINDA



Recordo ainda… e nada mais me importa…
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, de lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta…
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança…
Estrada afora após segui… Mas, aí,
Embora idade e senso eu aparente
Não vos iludais o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino… acreditai!…
Que envelheceu, um dia, de repente!… 

Mario Quintana,
in Nariz de Vidro

EVOLUÇÃO




Todas as noites o sono nos atira da beira de um cais
e ficamos repousando no fundo do mar.
O mar onde tudo recomeça...
Onde tudo se refaz...
Até que, um dia, criaremos asas.
E andaremos no ar como se anda em terra.

Mário Quintana
in Esconderijos do tempo




O SONO




O sono é uma viagem noturna.
O corpo – horizontal – no escuro
E no silêncio do trem avança.
Imperceptivelmente
Avança. Apenas
O relógio picota a passagem do trem.
Sonha a alma deitada em seu ataúde:
Lá longe
Lá fora
(Ela sabe!)
Lá no fundo do túnel
Há uma estação de chegada
- anunciam-na os galos, agora – 
Com a sua tabuleta ainda toda úmida de orvalho,
Há uma estação chamada
AURORA.

Mario Quintana
in: Preparativos de Viagem

A LUA DE BABILÔNIA



Numa esquina do Labirinto
às vezes
avista-se a Lua.
“Não! como é possível uma lua subterrânea?”

(Mas cada um diz baixinho:
Deus te abençoe, visão...)

Mário Quintana
In: Esconderijos do Tempo

LUNAR



As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...

E que importa se uns nossos artefactos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar ...

E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.

Não tanto...Alguém me há de ler com um meio sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel...E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo...

Mario Quintana
In 'Apontamentos de História Sobrenatural'

CANÇÃO DA NOITE ALTA



Menina está dormindo.
Coração bolindo.
Mãe, por que não fechaste a janela?
É tarde, agora:
Pé ante pé
Vem vindo
O Cavaleiro do Luar.
Na sua fronte de prata
A lua se retrata.
No seu peito
Bate um coração perfeito.
No seu coração
Dorme um leão,
Dorme um leão com uma rosa na boca.
E o príncipe ergue o punhal no ar:
. . . um grito
aflito. . .
Louca!

Mário Quintana
In: Canções


VERSO AVULSO




O luar é a luz do sol que está dormindo... 

Mario Quintana;
Da preguiça como método de trabalho, 1987

NOTURNO III



Um cartaz luminoso ri no ar
E mais outro... e mais!... Ó Noite, ó minha nega
Toda acesa
De letreiros,
Já pensaste como ainda serias mais linda
Muito mais
Se nós, os poetas, não soubéssemos ler?

Mario Quintana
In Baú de Espantos




sexta-feira, 3 de outubro de 2014

ROMANTISMO




Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,
para pensar um belo pensamento
e pousá-lo no vento!...

Quem tivesse um amor - longe, certo e impossível -
para se ver chorando, e gostar de chorar,
e adormecer de lágrimas e luar!

Quem tivesse um amor, e, entre o mar e as estrelas,
partisse por nuvens, dormente e acordado,
levitando apenas, pelo amor levado...

Quem tivesse um amor, sem dúvida nem mácula,
sem antes nem depois: verdade e alegoria...
Ah! Quem tivesse... (Mas quem tem? Quem teria?)


Cecília Meireles
in Mar Absoluto e outros poemas

SE UM PÁSSARO CANTAR...




Se um pássaro cantar dentro da noite
extraviado,
pensa com ternura nessa vida aérea,
sem alfabeto nem calendário,
tão pura, tão pura,
entre flores e estrelas,
sem data de nascimento,
sem nítida família,
e sem noção da morte.
Como os meninos que as mães deixaram,
Abandonados
Longe, na calçada dos séculos,
à porta de um pai improvável
e que choraram sem socorro.


Cecilia Meireles
in" Metal Rosicler"


ORAÇÃO DA NOITE



Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, - embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embalasse a juventude...

Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!

Que o sonho deite bênçãos de ramagens
E névoas soltas de distância e ausência
Na minha alma, que nunca foi feliz.

Escondendo-me as tácitas voragens
De males que me deram, sem consciência.
Pelos míseros bens que sempre fiz!... 


Cecília Meireles,
in Nunca Mais e Poemas dos Poemas


RENÚNCIA




Rama das minhas árvores altas,
deixa ir a flor! que o tempo, ao desprendê-la,
roda-a no molde de noites e de albas
onde gira e suspira cada estrela.

Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espaço,
ritmo, desenho, música absoluta,
dando e recuperando o corpo esparso
que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta.

Falo-te, por saber o que é perder-se.
Conheço o coração da primavera.
e o dom secreto do seu sangue verde,
que num breve perfume existe e espera.

Verti para infinitos desamparos
tudo que tive no meu pensamento.
Era a flor dos instantes amargos.
Por onde anda? No abismo. Dada ao vento...


Cecília Meireles
In Viagem, 1.938

TRANSIÇÃO




O amanhecer e o anoitecer
parece deixarem-me intacta.
Mas os meus olhos estão vendo
o que há de mim, de mesma e exata.

Uma tristeza e uma alegria
o meu pensamento entrelaça:
na que estou sendo a cada instante,
outra imagem se despedaça.

Este mistério me pertence:
que ninguém de fora repara
nos turvos rostos sucedidos
no tanque da memória clara.

Ninguém distingue a leve sombra
que o autêntico desenho mata.
E para os outros vou ficando
a mesma, continuada e exata.

(Chorai, olhos de mil figuras,
pelas mil figuras passadas.
e pelas mil que vão chegando,
noite e dia... -- não consentidas.
mas recebidas e esperadas!)

Cecília Meireles
In Mar absoluto – 1945-

A MULHER E A TARDE




O denso lago e a terra de ouro:
até hoje penso nessa luz vermelha
envolvendo a tarde de um lado e de outro.

E nas verdes ramas, com chuvas guardadas,
e em nuvens beijando os azuis e os roxos.

Até hoje penso nas rosas de areia,
nos ventos de vidro, nos ventos de prata,
cheios de um perfume quase doloroso.

Perguntava a sombra: " Que há pelo teu rosto?"
"que há pelos teus olhos?" - a água perguntava.

E eu pisando a estrada, e eu pisando a estrada,
vendo o lago denso, vendo a terra de ouro,
com pingos de chuva numa luz vermelha...

E eu não respondendo nada.
Sonho muito, falo pouco.

Tudo são risos de louco
e estrelas da madrugada...

Cecília Meireles
In "Vaga Música"

ANOITECER




Ao longo do bazar brilham pequenas luzes.
A roda do último carro faz a sua última volta.
Os búfalos entram pela sombra da noite,
onde se dispersam.

As crianças fecham os olhos sedosos.
As cabanas são como pessoas muito antigas,
sentadas, pensando.

Uma pequena música toca no fim do mundo.

Uma pequena lua desenha-se no alto do céu.

Uma pequena brisa cálida
flutua sobre a árvore da aldeia
como o sonho de um pássaro.

Oh, eu queria ficar aqui,
pequenina.

Cecília Meireles,
in Poemas escritos na Índia


PEQUENA CANÇÃO



Pássaro da lua,
que queres cantar,
nessa terra tua,
sem flor e sem mar?

Nem osso de ouvido
Pela terra tua.
Teu canto é perdido,
pássaro da lua...

Pássaro da lua,
por que estás aqui?
Nem a canção tua
precisa de ti!

CECÍLIA MEIRELES
In: Vaga Música




A LUA




Mesmo se eu disser que a lua
é uma porta de diamante,
ninguém verá como eu vejo
este próximo esplendor
até o distante horizonte.

Por essas escadas brancas
de luz, entre o céu e a terra,
descem límpidos os que adoro,
desconhecidos e amigos,
pessoas de outros lugares,
de outros séculos: e logo
nítidos nos reconhecemos,

e no chão do luar, secreto,
inverossímil e exato,
continuamos a conversa
por mortes interrompida.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa


APONTAMENTO



Ó noite, ó noite, ó noite!
Luar e primavera
e os telhados cobrindo
sonhos que a vida gera!


Subo por essas horas
solitária e sincera, 
e encontro, exausta e pura, 
minha alma que me espera. 


Cecília Meireles
In: Poesia Completa


MÚSICA




Noite perdida,
não te lamento:
embarco a vida

no pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,

puro e sem nada,
- rosa encarnada,
intacta, ao vento.

Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,

e ressuscitada...
(Asa da lua
quase parada,

mostra-me a sua
sombra escondida,
que continua

a minha vida
num chão profundo!
- raiz prendida

a um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,

muda alvorada
que o pensamento
deixa confiada

ao tempo lento...
Minha partida,
minha chegada,

é tudo vento...

Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada...


Cecília Meireles
Viagem, 1.938



SUAVISSIMA



Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente...
Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma...

Fica-se longe, quase morta, como ausente...
Sem ter certeza de ninguém . . . de coisa alguma...
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
Tão para lá! ...No fim da tarde... além da bruma...

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma...

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente...

Cecília Meireles
In: Baladas para El-Rei








quarta-feira, 1 de outubro de 2014

SONETO XIV




Se as horas passam entre a terra e o céu
Quero também passar com meus sentidos
Esquecer-me dos tempos revividos
E simplesmente caminhar ao léu.

Agora que a penumbra desce o véu
Na floresta dos dias repetidos,
Os bichos errarão, anoitecidos,
Nas almas misteriosas do mundéu.

Comigo passarão as luas mansas
Os segredos, as vozes sem futuro,
Os minutos de pedra deste jogo.

Na floresta do tempo, as esperanças
Serão as feras no caminho escuro
Dilacerando o espírito sem fogo.


Paulo Bomfim
in Sonetos – l.959 –



AS ESTRELAS




Desenrola-se a sombra no regaço
Da morna tarde, no esmaiado anil;
Dorme, no ofego do calor febril,
A natureza, mole de cansaço.

Vagarosas estrelas! passo a passo,
O aprisco desertando, às mil e às mil,
Vindes do ignoto seio do redil
Num compacto rebanho, e encheis o espaço...

E, enquanto, lentas, sobre a paz terrena,
Vos tresmalhais tremulamente a flux,
- Uma divina música serena

Desce rolando pela vossa luz:
Cuida-se ouvir, ovelhas de ouro! a avena
Do invisível pastor que vos conduz...

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)




sábado, 27 de setembro de 2014

A MONTANHA




Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
De um vago sussurrar de ladainha,
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha:

Rezas sobre os desertos e as areias,
Sobre as florestas e a amplidão marinha;
E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias,
Mudas servas aos pés de uma rainha.

Ardes, num holocausto de ternura...
E abres, piedosa, a solidão bravia
Para as águias e as nuvens, a colhe-las;

E invades, como um sonho, a imensa altura,
- Última a receber o adeus do dia,
Primeira a ter a bênção das estrelas!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)



O VALE



Sou como um vale, numa tarde fria,
Quando as almas dos sinos, de uma em uma,
No soluçoso adeus da ave-maria
Expiram longamente pela bruma.

É pobre a minha messe. É névoa e espuma
Toda a glória e o trabalho em que eu ardia...
Mas a resignação doura e perfuma
A tristeza do termo do meu dia.

Adormecendo, no meu sonho incerto
Tenho a ilusão do prêmio que ambiciono:
Cai o céu sobre mim em pirilampos...

E num recolhimento a Deus oferto
O cansado labor e o inquieto sono
Das minhas povoações e dos meus campos.


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)


CICLO




Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!

Dia. A flor, - o noivado e o beijo, como
Em perfumes um tálamo e um altar:
A árvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!

Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! saudade!... A dolorosa rama
Da árvore aflita pelo chão derrama
As folhas, como lágrimas... Lembrar!

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

HINO À TARDE




Glória jovem do sol no berço de ouro em chamas,
Alva! Natal da luz, primavera do dia,
Não te amo! Nem a ti, canícula bravia,
Que a ti mesma te estruis no fogo que derramas!

Amo-te, hora hesitante em que se preludia
O adágio vesperal, - tumba que te recamas
De luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,
Moribunda que ris sobre a própria agonia!

Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entre
Os primeiros clarões das estrelas, no ventre,
Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,

Trazes a palpitar, como um fruto do outono,
A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada...


Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)

NO BANCO DE JARDIM





No Banco de jardim
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.

No banco do jardim.
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.

No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.


Carlos Drummond de Andrade
In 'Poesia Completa'

PROCURANDO ESTRELAS



Faz frio! vou em busca de agasalho, 
oh! lágrimas... (e luto por contê-las!) 
olhos abertos, procurando estrelas, 
sigo, e na estrada, minha mágoa espalho. 

As flores choram lágrimas de orvalho, 
lágrimas vivas, trêmulas e, ao vê-las, 
vejo toda a criação chorando pelas 
folhas a balançar em cada galho. 

Sigo tristonho... Baila pelo espaço 
o lamento das cousas que ficaram 
sem um amor, sequer, para entendê-las. 

Deixo um pouco de dor por onde passo... 
Paro. Olho o céu. As mágoas debandaram 
ante o esplendor do riso das estrelas!


Lago Burnett 
In Estrela do Céu Perdido, l949

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

MANHÃ




Fresca manhã da vida, recomeço
Doutros orvalhos onde o sol se molha.
Nova canção de amor e novo preço
Do ridente triunfo que nos olha.

Larga e límpida luz donde se vê
Tudo o que não dormiu e germinou;
Tudo o que até de noite luta e crê
Na força eterna que o semeou.

Um aceno de paz em cada flor;
Um convite de guerra em cada espinho;
E os louros do perfeito vencedor
À espera de quem passa no caminho.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’

ENCONTRO



Quando o galo cantou na escuridão
Como um claro rumor que afasta o medo,
É que ele viu que chegara a ocasião
E que findara enfim o seu degredo.

Fosse qual fosse o dedo
Que lhe apontava a vida, era de mão
Que conhecia o mágico segredo
De negar e rasgar a solidão.

Mundo! - disse ele então, - Mundo de todos!
Mundo de estrelas, de ilusões, de lodos,
Onde nada é sozinho nem disperso:

Mundo! Sou eu aquela voz perdida,
Que vem juntar-se, arrependida,
Trazendo a humana gratidão de um verso.


Miguel Torga
in ‘Libertação’

RUMO



Rasga o pano da noite um grito agudo.
É o apelo de alguém.
Mas um aceno amargo não é tudo,
De mais a mais na bruma de onde vem.

Pode ser consciente, ou ser de quem
Sabe de gritos o que sabe um mudo.
Pode ser justo, e pode ser também
Vestido de injustiças de veludo.

Por isso, ninguém corre àquela voz.
A sua imprecisão passa veloz
Pelo caminho vago da ilusão.

Fogo que queima é fogo que se exprime.
O sentido do sangue é que redime
A angústia pendular do coração.


Miguel Torga 
in ‘Libertação’

DESTINO




Acordo com os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos,
acordo sem amarras nos sentidos,
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pôde vencer a lealdade
que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.

Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira irrequieta...
- O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de ter nascido,
Antes de a sua angústia começar.


Miguel Torga