sexta-feira, 31 de maio de 2013

ENAMORADO DA VIDA



Eu sou um enamorado da Vida!
Para sentir melhor o céu na minha casa,
Plantei a minha casa entre o mar e a montanha.
Se as ondas vêm rugir a meus pés, a horas mortas,
A lua desce a mim numa carícia estranha.

Bebo as estrelas de mais perto. . . Abraço
Todo o corpo do céu num simples movimento.
E, quando chove, sinto a torrente das chuvas
Trazendo da montanha, em seu penacho de águas,
Frondes, ninhos, calhaus e pássaros ao vento.

Eu sou um enamorado da Vida!
Amo-a por tudo quanto ela me pode dar:
A água fresca da fonte, a carícia da sombra,
E até a calma silenciosa e mansa
Desse crepúsculo que baixa devagar.

- Olegário Mariano -

sábado, 25 de maio de 2013

SERENA



Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavidade
do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.

E só assim, na levitação
da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.


- Henriqueta Lisboa,
in "Azul profundo"


SAIO DO SONHO, DA NOITE, DO ABSURDO




Saio do sonho, da noite, do absurdo:
sou navegante que aborda o limite humano,
espuma breve.
Meus vestidos são de uma tristeza total:
da frágil superfície ao denso forro,
profundo mar.
Pergunto-me por que venho
e por que venho assim vestida:
- é dos lugares do sonho, da noite, do absurdo?
- é do limite humano a que abordo,
séria e inerme?
Entre os dias humanos
e a noite ex-humana
que mensageiro acaso somos?
A que destinatários?
em que linguagem?
que mensagem?
Ó noite, ó sonhos,ó absurdo
onde, no entanto, fluíamos, claríssimos!

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

quarta-feira, 22 de maio de 2013

ANOITECER



A luz desmaia num fulgor d'aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora
Tenho bênçãos d'amor pra toda a gente!
Como eu sou pequenina e tão dolente
No amargo infinito desta hora!

Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...


Florbela Espanca

terça-feira, 21 de maio de 2013

AO LUAR



Quando, à noite, o Infinito se levanta
À luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!


AUGUSTO DOS ANJOS


sexta-feira, 17 de maio de 2013

ANTÍQUA



Ali, entre os juncais,
a face de um deus esquecido
reverberava na tarde.
- Tua alma é antiga, junta-te a nós -
chamavam me os juncos, e tremiam
ao meu silêncio - um vento
que eriçava a memória da água.


Fernando Campanella

SEGREDO




Imagino
que saio a pescar a luz na tarde,
meu samburá a tiracolo,
antes que os deuses do dia
atrelem as carruagens
e o sol se incline
no abismo da memória.

Mudo as pedras.

Imagino, então,
Dona Lua,
por puro encanto,
até as franjas do infinito
tecendo um halo
e capturando estrelas
no encalço.

Imagino, imagino,
e deste imaginar me reincorporo,
chispo rudes pérolas:
alucino?

Fernando Campanella

terça-feira, 14 de maio de 2013

PENUMBRA



Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser


DAVID MOURÃO-FERREIRA,
 in OBRA POÉTICA

segunda-feira, 13 de maio de 2013

RECOLHIDO A SÓS




Recolhido a sós, no silêncio dos astros,
absolutamente nada pertubará a noite,
parado o tempo, despojado o pensamento,
Nem um só tremor agitará o seu vazio.

Eu queria que o instante demorasse horas,
que meus olhos se queimassem
com o fogo das estrelas.

Manuel Filipe,
in "Tempo de Cinza"

quarta-feira, 1 de maio de 2013

SOLIDÃO



Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.
Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrêlas.

A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.


Cecília Meireles 
in "Poesia Completas"