domingo, 17 de novembro de 2013
ENQUANTO TUDO DORME.......
Enquanto tudo dorme, sento-me cheio de alegria
Sob a abóbada estrelada que as frontes alumia;
Perscruto se do alto vem um sinal rumoroso;
E a hora com sua asas docemente me brinda
Quando contemplo, comovido, a festa infinda
Que, de noite, ao mundo oferece o céu radioso!
Penso às vezes que estes sóis que resplandecem,
Na terra adormecida, só a minha a alma aquecem;
Que para os entender, só eu fui predestinado;
Que sou eu, sombra vã, obscura e taciturna,
O misterioso rei desta pompa nocturna;
Que só para mim o céu foi iluminado!
Novembro de 1829
Victor Hugo ,
in Poemas
(tradução de Maria Manuela Parreira da Silva)
A CADA UM
Amanhece.
O Sol come a neblina
e começa a pintar
caminhos,
árvores,
casinhas,
animais,
pessoas…
E a cada um
lhe põe sombra.
Humberto Ak’abal
In "Tecedor de palavras"
terça-feira, 12 de novembro de 2013
AURORA
O milagre da noite
se abrindo em manhã,
soltando o jorro preso
da luz,
soltando os pássaros,
as nuvens claras,
as cores todas
e o cheiro bom do café.
Roseana Murray,
in Poemas de céu
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
A TARDE CAI LENTAMENTE
Como quem olha pela última vez o destino
das sombras, a tarde cai, lentamente,
retomando aromas e sons
que a claridade do dia preteriu.
É, então, que ressaltam as emoções,
desordenadamente guardadas no peito
e os pássaros voam, quase loucos,
à procura do sol.
Graça Pires
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
O RIO
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.
Manuel Bandeira
In: "Estrela da vida inteira"
terça-feira, 5 de novembro de 2013
ESPECTROS
Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,
Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.
Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,
Da lâmpada à inconstante claridade
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sois),
Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.
Cecília Meireles
In: Espectros (1919
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
AMARGO
Há um mar, o dos velames,
das praias ardendo em ouro.
Há outro mar, o mar noturno,
o das marés com a lua
a boiar no fundo
o mênstruo da madrugada.
E afinal o outro, o do amor amargo,
meu mar particular, o mais profundo,
com recifes sangrando, um mar sedento
e apunhalado.
Max Martins
De Anti-retrato (1960)
domingo, 3 de novembro de 2013
AS ÁRVORES
Na celagem vermelha, que se banha
Da rutilante imolação do dia,
As árvores, ao longe, na montanha,
Retorcem-se espectrais à ventania.
Árvores negras, que visão estranha
Vol aterra? que horror vos arrepia?
Que pesadelo os troncos vos assanha,
Descabelando a vossa ramaria?
Tendes alma também... Amais o seio
Da terra; mas sonhais, como sonhamos,
Bracejais, como nós, no mesmo anseio...
Infelizes, no píncaro do monte,
(Ah! não ter asas!...) estendeis os ramos
À esperança e ao mistério do horizonte...
Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)
POENTE
A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.
Não me toques, fales,olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui
Eu quero que tu desfolhes
A minha ideia de ti...
Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.
Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia...Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,
Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, iriado
De ti, mancha nesta calma
Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.
Fernando Pessoa
In Poesia
sábado, 26 de outubro de 2013
A PASSAGEM DAS HORAS
A passagem das horas
o perpassar dos dias
o lento fervilhar do tempo em seus artifícios
de claridade e penumbra
trazem-nos a este lugar preciso
de quietude
em ondulações do silêncio e apaziguamento.
É aqui
onde deveremos aprender
os festejos da luz
a sombra do pecado original
dos fascínios
pelo regresso urgente
a nossa casa.
Vieira Calado
em "As Noites e os Dias"
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
CREPÚSCULO
Tomba a névoa da tarde. O ar sereno enlanguesce.
Dilui-se a montanha. O poente morto é lindo!
Recolhido, o arvoredo é um êxtase, uma prece.
Tênue e trêmula poeira, a sombra vai caindo ...
Na distância imprecisa, a estrada desce ... desce ...
De onde a tristeza vem? Desmaia o azul infindo.
Mergulhada na sombra, a Montanha mais cresce.
O horizonte se apaga, entre a bruma, fugindo ...
Onde a turba febril das horas agitadas?
Houve um êxodo estanho ... As vivendas fechadas ...
Só, no jardim, soluça um repuxo sonoro ...
Morre, de todo, a luz ... O céu se distancia ...
O silêncio é maior .. A terra mais vazia ...
De onde veio a tristeza? A sombra aumenta ... E eu choro ...
Tasso da Silveira
in Poemas
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
SONHOS DA MENINA
A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho
risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?
A vizinha
apanha
a sombrinha de teia de aranha...
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?
Cecília Meireles,
in Ou isto ou aquilo
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
SIM,VEM UM CANTO
SIM,VEM UM CANTO na noite.
Não lhe conheço a intenção.
Não sei que palavras são.
É um canto desligado
De tudo que o canto tem.
É algum canto de alguém.
Vem na noite independente
Do que diz bem ou mal.
Vem absurdo e natural.
Já não me lembro que penso.
Ouço: é um canto a pairar
Como o vento sobre o mar.
Fernando Pessoa
In Poesias Inéditas
terça-feira, 22 de outubro de 2013
TODOS OS DIAS
Todos os dias
nascem pequeninas nuvens,
róseas umas,
aniladas outras,
nacaradas espumas...
Todos os dias
nascem rosas,
também róseas
ou cor de chá, de veludo...
Todos os dias
nascem violetas,
as eleitas
dos pobres corações...
Todos os dias
nascem risos, canções...
Todos os dias
os pássaros acordam
nos seus ninhos de lãs...
Todos os dias
nascem novos dias,
nascem novas manhãs...
Saúl Dias
In ‘Essência’ (1973)
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
RUMO
Rasga o pano da noite um grito agudo.
É o apelo de alguém.
Mas um aceno amargo não é tudo,
De mais a mais na bruma de onde vem.
Pode ser consciente, ou ser de quem
Sabe de gritos o que sabe um mudo.
Pode ser justo, e pode ser também
Vestido de injustiças de veludo.
Por isso, ninguém corre àquela voz.
A sua imprecisão passa veloz
Pelo caminho vago da ilusão.
Fogo que queima é fogo que se exprime.
O sentido do sangue é que redime
A angústia pendular do coração.
Miguel Torga
in ‘Libertação’
UM RIO TE ESPERA
Estás só, e é de noite,
na cidade aberta ao vento leste.
Há muita coisa que não sabes
e é já tarde para perguntares.
Mas tu já tens palavras que te bastem,
as últimas,
pálidas, pesadas, ó abandonado.
Estás só
e ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
Olhas a água onde passaram barcos,
escura, densa, rumorosa
de lírios ou pássaros nocturnos.
Por um momento esqueces
a cidade e o seu comércio de fantasmas,
a multidão atarefada em construir
pequenos ataúdes para o desejo,
a cidade onde cães devoram,
com extrema piedade,
crianças cintilantes
e despidas.
Olhas o rio
como se fora o leito
da tua infância:
lembras-te da madressilva
no muro do quintal,
dos medronhos que colhias
e deitavas fora,
dos amigos a quem mandavas
palavras inocentes
que regressavam a sangrar,
lembras-te da tua mãe
que te esperava
com os olhos molhados de alegria.
Olhas a água, a ponte,
os candeeiros,
e outra vez a água;
a água;
água ou bosque;
sombra pura
nos grandes dias de verão.
Estás só.
Desolado e só.
E é de noite.
Eugénio de Andrade
sábado, 19 de outubro de 2013
EPITÁFIO
Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde
O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.
Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que
Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.
VINÍCIUS DE MORAES
In Livro de Sonetos, 1967
sexta-feira, 18 de outubro de 2013
19
Ah, esta Lua tão branca é a minha Lua de sempre.
Não é verdade que se tenham escoado os instantes inumeráveis.
Esta Lua alumia ainda a minha alma de menino,
e seu puro clarão escorre sobre as frescas madressilvas
da cerca de ripas do quintal antigo.
Esta Lua tão branca é a Lua do mundo imenso
em que não havia nem sofrimento nem tumulto.
Do mundo de silêncio infinito,
de cujo seio surdia o canto misterioso
do seres e dos destinos . . .
Tasso Da Silveira
In: Poemas De Antes
DO FUNDO DO CREPÚSCULO
Do fundo do crepúsculo,
O vento tombou como uma ave ferida
Sobre os tufos e as palmas verdes
do dormente jardim.
Bateu, raivoso, as possantes asas,
rodopiou exasperado
entre as frondes em pânico.
E miraculosamente recompondo
o perdido equilíbrio,
em brusco, violento arranco
ergueu voo outra vez para o espaço sem fim...
Tasso da Silveira
(Contemplação do Eterno, 1952)
O vento tombou como uma ave ferida
Sobre os tufos e as palmas verdes
do dormente jardim.
Bateu, raivoso, as possantes asas,
rodopiou exasperado
entre as frondes em pânico.
E miraculosamente recompondo
o perdido equilíbrio,
em brusco, violento arranco
ergueu voo outra vez para o espaço sem fim...
Tasso da Silveira
(Contemplação do Eterno, 1952)
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
UM MINUTO À NOITE
A cidade dorme
o sono da madrugada.
Nenhum ser vivo
àquela hora silente.
O mundo noturno
cala-se...
Bares cerrados.
Apenas luminárias
com propagandas
de refrigerantes
permanecem despertas,
exibindo letras vermelhas
e grandes.
A cidade está
só,
com os sentimentos
da noite.
Delores Pires
in A Estrela e a Busca
TEMPESTADES
Galhos desnudos buscam o infinito,
qual se pedissem, do sol, a benesse;
folhas dispersas dançam louco rito,
o vendaval se espalha...Eis que anoitece.
(e no meu peito, coração contrito,
tristeza tanta,quase me ensandece!).
Nuvens se chocam, em feroz conflito,
trovões urrando um canto que ensurdece...
Raios nervosos, traçam estranho escrito
no plúmbeo céu...O dia, então fenece.
E a chuva chega, aos prantos, desvairada,
derruba sonhos, faz da vida um nada...
E uma saudade, que em meu corpo cresce,
faz-se tormenta...quando a noite desce!
Patrícia Neme in
Sonetos em Dor Maior
CANTO DA MADRUGADA
Avancei pela noite.Abri os braços e recebi a aurora pequenina.
Chorava ainda. Suas lágrimas desceram sobre meu rosto.
Veio um perfume forte de flores molhadas,
Renovaram-se as vozes dos galos pelas campinas úmidas.
Lenhadores dormem nos casebres frios.
Estão nascendo flores misteriosas
Estão crescendo grandes almas nas sombras da noite.
Porque há um canto que sai da noite e vem acordar a aurora adormecida!
Augusto Frederico Schmidt
In Um século de poesia
ESTRELA SOLITÁRIA
Ó Estrela solitária nos céus!
Ó Estrela que o mar parece convidar
Para um encontro impossível!
Ó Estrela impassível,
Estrela dos abismos, Estrela dos abismos!
Há quanto desafias o tempo!
Há quanto esperas o fim dos tempos!
Estrela, que o mar convida
Para um encontro fatal,
Por que nos olhas assim, tão tristemente?
A nós, tu pareces, solitária Estrela,
A imagem de um desespero sem forma,
A imagem de uma suprema tristeza.
Em torno de ti está o silêncio, o grande silêncio;
Em torno de ti está o frio irreparável.
Não descerás jamais aos móveis abismos,
Ó Estrela dos abismos!
Ficarás com a tua vida luz,
Enfeitando as estrelas sem termo.
As frias flores, salvas da morte,
Estão dançando nos caminhos do céu.
Ó Estrela fonte da glória dos mundos,
Estrela dos abismos, Estrela dos abismos!
Augusto Frederico Schmidt
PELAS LARGAS JANELAS ENTRA A NOITE
Pelas largas janelas entra a noite quieta e um cheiro de frutos maduros,
Pelas janelas abertas chega até nós um perfume frio de estrelas.
Pelas janelas abertas penetra a mansa poesia dos caminhos, das
viagens noturnas com pássaros dormindo nas ramadas...
Oh!o sossego do lampião na mesa tosca,
E o sorriso do amor sobre os postais da parede!
Onde a música não chega, aí estaremos.
Onde o repouso se estender nascendo pelas madrugadas aí estaremos.
Estaremos confundidos pelos ramos virginais e pela nudez das campinas.
Estaremos misturados com os passarinhos das cercas.
Os ruídos dos trens cortarão nossos ouvidos.
Mas as nostalgias não estarão mais em nós,
Porque seremos simples como a noite,
Como a grande noite resinosa e infinita.
Augusto Frederico Schmidt
SONETO
Noites, estranhas noites, doces noites!
A grande rua, lampiões distantes,
Cães latindo bem longe, muito longe.
O andar de um vulto tardo, raramente.
Noites, estranhas noites, doces noites!
Vozes falando, velhas vozes conhecidas.
A grande casa; o tanque em que uma cobra,
Enrolada na bica, um dia apareceu.
A jaqueira de doces frutos, moles, grandes.
As grades do jardim. Os canteiros, as flores.
A felicidade inconsciente, a inconsciência feliz.
Tudo passou. Estão mudas as vozes para sempre.
A casa é outra já, são outros os canteiros e as flores
Só eu sou o mesmo, ainda: não mudei!
Augusto Frederico Schmidt
In ‘Pássaro cego’ (1930).
QUANDO EU MORRER
Quando eu morrer o mundo continuará o mesmo,
A doçura das tardes continuará a envolver as coisas todas.
Como as envolve agora neste instante.
O vento fresco dobrará as árvores esguias
E levantará as nuvens de poesia nas estradas...
Quando eu morrer as águas claras dos rios rolarão ainda,
Rolarão sempre, alvas de espuma
Quando eu morrer as estrelas não cessarão de acender-se
no lindo céu noturno,
E nos vergéis onde os pássaros cantam as frutas
continuarão a ser doces e boas.
Quando eu morrer os homens continuarão sempre os mesmos.
E hão de esquecer-se do meu caminho silencioso entre eles,
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer os prantos e as alegrias permanecerão.
Todas as ânsias e inquietudes do mundo não se modificarão.
Quando eu morrer a humanidade continuará a mesma.
Porque nada sou, nada conto e nada tenho.
Porque sou um grão de poeira perdido no infinito.
Sinto porém, agora, que o mundo sou eu mesmo
E que a sombra descerá por sobre o universo vazio de mim
“Quando eu morrer...”
Augusto Frederico Schmidt
In "Nova Antologia Poética"
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
CITAÇÃO
A noite é a nossa dádiva de sol
aos que vivem do outro lado da Terra.
Carlos de Oliveira
(in Trabalho Poético)
CITAÇÃO
Vou acompanhando as horas da noite com as palavras.
Dedico-me assim, com o acorde do silêncio, ao mais
inocente de todos os afazeres:
- à poesia.
Horácio
POEMA DA TARDE
A tarde move-se entre os galhos das minhas mãos.
Uma estrela aparece no fim do meu sangue,
Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.
Todas as formas servem-se mutuamente,
Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,
Regando o coração e a cabeça do homem:
E dentre os primeiros véus surge Maria da Saudade
Que, sem querer, canta.
Murilo Mendes
SORTILÉGIOS
Caminho sobre o fio
dos telhados ao entardecer,
quando a luz é substância
de sonhos
e tinge o coração de orquídeas.
Caminho e sussuro
sortilégios,
toco invisíveis borboletas
e, no minuto exato
em que o sol se desfaz
e uma lua líquida
levanta suas âncoras,
tuas mãos me alcançam.
Roseana Murray
In Recados de Corpo e Alma
INVENÇÕES
Invento
luares de agosto
e auroras boreais
invento as noites mais quentes
invento crisântemos transparentes
guirlandas de silêncios minerais
invento algas cristalinas
cavernas de cristais
invento o que só com amor
se pode inventar
o que já foi dito mil vezes
e que sempre se dirá.
Roseana Murray
In Fruta no Ponto
e auroras boreais
invento as noites mais quentes
invento crisântemos transparentes
guirlandas de silêncios minerais
invento algas cristalinas
cavernas de cristais
invento o que só com amor
se pode inventar
o que já foi dito mil vezes
e que sempre se dirá.
Roseana Murray
In Fruta no Ponto
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
MIA COUTO
Não é da luz que carecemos.
Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e,
afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita
ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade
que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o
lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade
da nossa morada terrestre.
Necessitamos não do nascer do Sol.
Carecemos do nascer da Terra.
MIA COUTO
in "Contos do Nascer da Terra", 2006
UM LUGAR DE SOBREVIVÊNCIA
Apesar de tudo, a noite
continua a ser um lugar de sobrevivência,
a contraluz sensual de todas as rotinas,
um barco acostado ao largo dos astros.
Há prosas de fascínio a assinalar improvisos
nas pálpebras da manhã
quando, à mercê do acaso,
um abraço é o secreto anúncio de uma festa.
Graça Pires,
in Conjugar afectos
ACORDANDO
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer, esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh’alma sobe e canta.
Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...
Mas, de repente, um vento úmido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. — A noite é negra e muda: a dor
Cá vela, como d’antes, ao meu lado..
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!
ANTERO DE QUENTAL
In Sonetos
HENRY DAVID THOREAU
“...Talvez os fatos mais estarrecedores e verdadeiros nunca
sejam comunicados de homem a homem.
A verdadeira colheita do meu dia-a-dia é algo de tão intangível
e indescritível como os matizes da aurora e do crepúsculo.
O que tenho nas mãos é um pouco de poeira de estrelas
e um fragmento de arco-íris.”
Henry David Thoreau,
in Walden ou a Vida Nos Bosques
TARDE AZUL
Minúscula, branca,
leve, sem rumor,
bóia no azul uma nuvem:
volve teus olhos e sente
como em seu alvo frescor te conduz
feliz por entre sonhos azuis.
Hermann Hesse
In: Andares
SIM, TU ÉS O PORVIR ...
Sim, tu és o porvir, a grande aurora,
que desponta das planícies da eternidade.
Tu és o canto do galo após a noite do tempo,
tu és orvalho, albas, menina,
tu és o viajante, a morte, a mãe ...
Tu és a forma que incessantemente muda,
que, solitária, emerge do destino,
que não se comemora nem lamenta,
pois ninguém te dirigiu, floresta selvagem.
Tu és o fundo essencial das coisas
que cala a última de sua essência
e que mostra aos outros sempre outro:
terra ao barco, e navio à costa.
Rainer Maria Rilke
in Antologia Poética
SONETO DECADENTE
Morria rubro o sol e mansa, mansamente...
sombras baixando em flocos, lentas, pelo espaço...
Um morrer pungitivo e calmo de inocente:
doces, as ilusões fanadas no regaço.
Passa um cicio leve e suave... Num traço,
ave rápida passa súbita e tremente...
A tristeza, que vem, cinge como um baraço
a garganta: o soluço estaca ali fremente...
Lembranças de pesar... Navio que na curva
do mar, de água pesada e funda e escura e turva,
some-se de vagar das ondas ao rumor...
Ó crepúsculos sós! os exilados sentem
a angústia sem igual de amantes que pressentem
o derradeiro adeus do derradeiro amor!
José Joaquim Medeiros e Albuquerque
ÀS SEIS DA TARDE
Às seis da tarde sempre morro um pouco.
Vou-me embora com o dia. Mas, retorno
para à noite tecer finas mortalhas
onde me abrigarei – mas não tão cedo.
Pela manhã desperto cega e inflável
dependendo do sopro e o espaço em torno.
Devagar, abro os olhos: e aos detalhes
fluidos, olhar mais nítido concedo.
E face ao dia – colhê-lo ou carpi-lo?
Se um tanto tem de flor o outro de cinzas,
desfolhá-lo, indecisa ou despedi-lo?
Que tanto faz me traga as boas-vindas
ou se esconda e ofereça-se em sigilo.
Às seis da tarde morrerei à míngua.
Maria Thereza Noronha
O CREPÚSCULO DOS DEUSES
Fulge em nuvens, no poente, o Olimpo. O céu delira.
Os deuses rugem. Entre incêndios de ouro e gemas,
Há torrentes de sangue, hecatombes supremas,
Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira,
Ilíadas, bulcões de gládios e díademas,
Ossa e Pélio tombando, e Zeus em raios de ira,
E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a lira
Em reverberações de batalhas e poemas...
Mas o vento, embocando as bramidoras trompas,
Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto,
Os numes e os titãs, varridos à rajada:
E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas,
Chamas, o Olimpo, - tudo esbate-se, sepulto
Em cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, em nada.
OLAVO BILAC
domingo, 6 de outubro de 2013
BEM QUE EU QUERIA DORMIR
Bem que eu queria dormir.
mas a culpa chamou-me a noite inteira.
Eu preferia fugir,
mas a morte arranhava a minha porta.
Devia esquecer o amor,
mas esse não desiste de mim:
me agarra, me devora e me vomita
no alto da escada.
enganosa luz.
Bela dama: basta uma palavra tua.
LYA LUFT
in Mulher no palco, 1984
sábado, 5 de outubro de 2013
NOITE
Sozinha estou entre paredes brancas
Pela janela azul entrou a noite
Com seu rosto altíssimo de estrelas
Sophia de Mello Breyner Andresen
do livro - Mar Novo
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
ERA UMA RUA TÃO ANTIGA...
Para
Telmo Vergara
Era uma rua tão antiga, tão distante
que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada...
Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante
de quem tornasse a ver uma primeira namorada
em todo o seu feitiço do primeiro instante.
E a noite, sobre a rua, era toda estrelada...
Havia, aqui e ali, cadeiras na calçada...
E o quanto me lembrei, então, de um amigo constante,
dos que, na pressa de hoje, nem se usam mais
como essas velhas ruas que parecem irreais
e a gente, ao vê-las, diz: “Meu Deus, mas isto é um sonho!”
Sonhos nossos? Não tanto, ao que suponho...
São os mortos, os nossos pobres mortos que, saudosamente,
estão sonhando o mundo para a gente!
Era uma rua tão antiga, tão distante
que ainda tinha crepúsculos, a desgraçada...
Acheguei-me a ela com este velho coração palpitante
de quem tornasse a ver uma primeira namorada
em todo o seu feitiço do primeiro instante.
E a noite, sobre a rua, era toda estrelada...
Havia, aqui e ali, cadeiras na calçada...
E o quanto me lembrei, então, de um amigo constante,
dos que, na pressa de hoje, nem se usam mais
como essas velhas ruas que parecem irreais
e a gente, ao vê-las, diz: “Meu Deus, mas isto é um sonho!”
Sonhos nossos? Não tanto, ao que suponho...
São os mortos, os nossos pobres mortos que, saudosamente,
estão sonhando o mundo para a gente!
Mario
Quintana
De: Apontamentos de História Sobrenatural
De: Apontamentos de História Sobrenatural
A MULHER E A TARDE
O denso lago e a terra de ouro:
até hoje penso nessa luz vermelha
envolvendo a tarde de um lado e de outro.
.
E nas verdes ramas, com chuvas guardadas,
e em nuvens beijando os azuis e os roxos.
.
Perguntava a sombra: “Quem há pelo teu rosto?”
“Que há pelos teus olhos?” – a água perguntava.
.
E eu pisando a estrada, e eu pisando a estrada,
vendo o lago denso, vendo a terra de ouro,
com pingos de chuva numa luz vermelha…
.
E eu não respondendo nada.
.
Sonho muito, falo pouco.
Tudo são riscos de louco
e estrelas da madrugada…
.
Cecília Meireles
In "Vaga Música", 1942
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
FANTÁSTICA
Ampla se estende a erma planície nua.
Cobre-a o funéreo manto do luar
E cada sombra no chão se recorta
Com nitidez de paisagem lunar.
Mas que imobilidade singular
Que as coisas têm! E que nudez! Aflito,
O ouvido indaga, espera... E nem um grito
Vem o imóvel silêncio apunhalar.
Mostra-se a Lua. A sua enorme face
lembra um disco de prata formidando
que um Titã aos Céus arremessasse;
Vem branca, branca, de um palor que pasma.
E enquanto vai a Lua transmontando
uiva lugubremente um cão fantasma.
MARIO QUINTANA
In A cor do invisível, 1989
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