sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

POEMA DO NATAL



PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinicius de Morais
em O Operário em Construção e Outros Poemas

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

ANTES



Antes que desça a noite,
imprimir na retina
os rostos amados,
o sol
as cores,
o céu de outono
e os jardins da primavera. 

Inundar de sons
de vozes
e de música eterna
os ouvidos
antes que os atinja
a maré do silêncio. 

Conquistar
os pontos culminantes
da vida,
antes que se esgote
o prazo de permanência
em seu território sagrado.


Helena Kolody,
in Paisagem Interior 

AURORA



Aurora rubra flor no céu doente,
gesto de Deus a fecundar o dia!
Houve uma aurora no rosto de Maria
Quando ela viu o anjo em sua frente.

Aurora é uma lenda que amanhece,
é uma eterna esperança em agonia,
se Deus aflito rezasse qualquer dia
madrugada seria a sua prece.

Aurora é uma lenda suicida
que num ato de beleza incontida
dissolveu-se em neblina sobre o mar.

É o coração de Deus puro e brilhante
que desce do céu por instante
como o santo-graal sobre o altar.


Yttérbio Homem de Siqueira,
in Abismo Intacto

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

MEMÓRIA



Na longíqua tarde
ledas conversas de seda
saudades saudades...

Delores Pires,
in O Livro dos Haicais

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

ARTE POÉTICA



Da janela de onde olha a paisagem lá fora,
a escutar o fluir da água que canta e chora,
por sob a ponte, sempre em mesmo diapasão,
como se o rio fosse a música do chão,
o poeta sonha...
Desce a sombra nas calçadas.
Alguém passa assobiando umas notas trinadas.
O ar amortece ...A brisa é terna como um beijo
nos olhos...E, ao sabor da brisa, sem desejo,
sem ânsias e sem pressa, erra o seu pensamento,
vadiamente, como um pássaro ao relento...
Pouco a pouco, porém, a doçura da tarde
que os contornos suaviza e que as folhas encarde,
e esse esparso langor da hora crepuscular
em que tudo parece estático, a cismar,
despertam na sua alma ignota melodia.
Memória... exaltação... delícia...nostalgia...
Silêncio. A natureza arfa e se exaure, lassa.
Fechar de asas e sons e ruídos em que passa
a eterna indagação do crepúsculo... E quando
no céu amplo e disperso
nasce a primeira estrela cintilando,
nasce o primeiro verso...

Onestaldo de Pennafort
Poesia

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

AMAR QUEM ESTÁ TÃO PRÓXIMO DA MORTE .



Esta estação do ano podes vê-la
em mim: folhas caindo ou já caídas;
ramos que o frémito do frio gela;
árvore em ruína, aves despedidas.
E podes ver em mim, crepuscular,
o dia que se extingue sobre o poente,
com a noite sem astros a anunciar
o repouso da morte, gradualmente.
Ou podes ver o lume extraordinário,
morrendo do que vive: a claridade,
deitado sobre o leito mortuário
que é a cinza da sua mocidade.
Eis o que torna o teu amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.

William Shakespeare,
in Sonetos

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O NEVOEIRO DA ESPERA COLADA NOS SONHOS



Desenrola-se em nossos olhos
a vertigem transparente
que agride o declínio do dia
quando a lua se encosta nos vidros
e temos o nevoeiro da espera colado nos sonhos.
Há muito que sabemos como é intocável a luz
do orvalho na raiz da mágoa.
Palavras em estilhaços flutuam sobre os móveis
como fantasmas ou como as fadas
da mais antiga infância.
Respiramos devagar o sopro errante do vento.

GRAÇA PIRES,
in A INCIDÊNCIA DA LUZ



segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

ANOITECER



Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?

Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.

A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.

E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.

Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.
Pois, só quando estou em silêncio

elas pousam em mim — as palavras —
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer.

Cassiano Ricardo

domingo, 2 de dezembro de 2012

PARA ESQUECER



Para esquecer as nuvens cor de fruto,
o acenar do crepúsculo absoluto
e este ficar-me em restos retardios,
a minha sombra escrevo entre dois rios.

Cada minuto é o último minuto,
e com meus olhos e meus dedos luto,
e de cegueira teço ávidos fios
sobre pêndulos, pedras, poços frios.

A vida cabe em minha boca ardente,
e eu a soletro, em fuga, no acidente
de disparadas linhas. E o que existe,

o que de meu mais fundo mim afogo
sob a ilusão de verbo, rosa e fogo
é engano, rastro e som de um homem triste.

Abgar Renault

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

TARDES INVENTADAS



As tardes inventei-as.

Fulgurantes umas,
sonolentas outras,
quentes ou arrepiantes
e todas
geradoras de instantes
impossíveis...

Atiro um braço ao ar
e quero que ele prenda uma estrela,
um cometa,o floco de renda
de mil cassiopeias...

É dia e há luar...

As tardes inventei-as.

Saúl Dias

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

FESTA NOTURNA



O sol
vestiu o entardecer
com rendas douradas,
violetas e azuis...
Para a festa da noite,
a lua cheia
transformou-se
em prateada medalha
e enfeitou
o peito redondo do infinito...

Adélia Maria Woellner

terça-feira, 27 de novembro de 2012

ECOS D'ALMA



Oh! madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!

Longe das tristes noutes tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplandor das Primaveeras
Oh! madrugada azul dos meus sonhares;

Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça,

Quem me dera morrer então risonho,
Fitando a nebulosa do meu Sonho
E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

Augusto dos Anjos

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

MANHÃ



Fresca manhã da vida, recomeço
Doutros orvalhos onde o sol se molha.
Nova canção de amor e novo preço
Do ridente triunfo que nos olha.

Larga e límpida luz donde se vê
Tudo o que não dormiu e germinou;
Tudo o que até de noite luta e crê
Na força eterna que o semeou.

Um aceno de paz em cada flor;
Um convite de guerra em cada espinho;
E os louros do perfeito vencedor
À espera de quem passa no caminho.

Miguel Torga
in ‘Libertação’

domingo, 25 de novembro de 2012

OS SERES AMADOS SÃO SOMBRAS...



Os seres amados são sombras que se apagam,
são sombras de um jardim, no entardecer.

Nós tínhamos no olhar o encantamento
dos lúcidos recortes,
dos arabescos harmoniosos
desenhados no chão.

Mas um por um diluiram-se os desenhos
numa sombra maior ...

Os seres amados são sombras,
são sombras de um jardim, no entardecer ...


Tasso da Silveira
in Poemas

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

BRANCA NOITE DE LUAR



Mal o dia se esgueira e foge entre as árvores do crepúsculo,
insinuam-se os seus finais entre as dúvidas do nascer da noite.
Pára o rio e sua viagem. Cessam as águas a sua voz.
Cantos de pássaros interrompem-se e tombam nos ouvidos da solidão.
Póstumos bois adormecem no relvado as suas sombras,
e um gesto final do ocaso conduz a ovelha derradeira.
Entre os rebanhos recolhidos recolheu-se a tarde
e, enquanto as distâncias se estiram brancamente,
lúcido vinho vai a terra embebedando:
o chão é claro sonho e firmamento.
Verte o céu a sua azul antiguidade
sobre as formas, as ausências e os corações dos homens,
e a lua vai abrindo em leve solo nas alturas
imaginativas ruas de silêncio, de outrora,
de alva tristeza e amoroso pensamento.


Abgar Renault

NA TARDE AZUL E TRISTE...



O meu jardim amanhecera
Constelado de brancas margaridas,
Que orvalhadas, ao sol, eram estrelas
Desencantadas e pensativas...
Depois, na tarde azul e triste,
A terra abriu-se para receber-te!

Adormeceste para sempre,
Baixando à terra com as margaridas...
E à noite o céu era um jardim do Oriente
Florindo em luzes pela tua vinda!

Anoitecia no meu pensamento...


Da Costa e Silva ,
in Poesias Completas

NESTE CAIR DE TARDE...



Neste cair de tarde
meus cantos são prelúdios.

São começos, apenas,
de largas sinfonias
que tombam subitamente
sem chegar à expressão.

O mistério é muito fundo
para que possa enche-lo outra música
que não a do infinito silêncio.

Tasso da Silveira

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

TRISTEZA



Esta tristeza que me envolve agora
Nem me deixa sequer pensar em mim…
Cai na terra o silêncio; e nesta hora
A minha dor vai descansar enfim.

O sol ao longe todo o céu colora
De nuvens cor de fogo e de rubi
E as árvores também, como quem ora,
Rumorejam nas sombras do jardim.

E no silêncio desta tarde linda
Paira na terra uma doçura infinda,
Asas leves de sonho e de agonia…

Morrem ao longe as nuvens incendiadas,
Quando o silêncio e a sombra de mãos dadas
Amortalham a luz, ao fim do dia…

Anrique Paço d"Arcos 

chuva de cinzas



Chuva de cinzas...Cai a tarde lá por fora
na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.

Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.

Hora crepuscular - concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;

hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.


Gilka Machado,
in Velha Poesia

OCASO



Quando o ocaso se faz presente
Uma a uma as quimeras vão desaparecendo
Quais pássaros retornando ao ninho...
Para volver no pleno alvorecer...
Quando irão renascer as ilusões.

Dia após dia, se repetindo
Sem nunca realizar o tão almejado sonho...
O único certo é o incerto já conhecido.

Anna Carlini
De ‘Fadado ao Esquecimento 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

''12''



Um mar matinal. Um mar do começo. Um mar primevo.
Um mar ainda nascendo do mistério.
Um mar virginal e azul.

Um barco que fosse o primeiro barco que eu visse.
Um barco com a vela panda, acusando
a presença do vento novo
no imenso côncavo azul.

Esse mar e esse barco. E a alma que eu perdi para sempre,
que para sempre deixei nos olhos e nas bocas
da hora azul . . . 

Tasso da Silveira
In: Puro Canto

ACALANTO



Exaustos de fotografar a vida 
em seus sessenta aspectos por minuto, 
adormecem os olhos no aconchego 
de crepúsculo antigo e sempre novo: 
as imagens do dia, prisioneiras 
entre as dobras das pálpebras, discutem 
argumentos possíveis para um sonho. 


GEIR CAMPOS 
In Rosa dos rumos 

BEBIDO O LUAR



Bebido o luar, ébrios de horizontes, 
Julgamos que viver era abraçar 
O rumor dos pinhais, o azul dos montes 
E todos os jardins verdes do mar. 

Mas solitários somos e passamos, 
Não são nossos os frutos nem as flores, 
O céu e o mar apagam-se exteriores 
E tornam-se os fantasmas que sonhamos. 

Por que jardins que nós não colheremos, 
Límpidos nas auroras a nascer, 
Por que o céu e o mar se não seremos 
Nunca os deuses capazes de os viver. 


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Dia do mar

CAMPOS ENTARDECIDOS



O poente em pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
remanseou-se ao redor do vilarejo.
Os cincerros recolhem a tristeza
dispersa dessa tarde. A lua nova
é um fio de voz que vem do céu.

Conforme vai anoitecendo
volta a ser campo o vilarejo.

O poente que não cicatriza
ainda fere a tarde.
As cores trêmulas se acolhem
nas entranhas das coisas.
No aposento vazio
a noite fechará os espelhos.

Jorge Luis Borges
in Primeira Poesia

domingo, 18 de novembro de 2012

NEVOEIRO



Quem poderá saber que estranha bruma 
Brotou caladamente em minha volta
Para que eu perdesse as horas uma a uma
Sem um gesto, sem gritos, sem revolta.

Quem poderá saber que estranhos laços

E que sabor de morte lento e amargo
Sugaram todo o sangue dos meus braços –
O sangue que era sede do mar largo.

Quem poderá saber em que respostas

Se quebrou o subir do meu pedido
Para que eu bebesse imagens decompostas
À luz dum pôr de sol enlouquecido.

Sophia de Mello Breyner Andresen


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

SILHUETAS




Ao entardecer
são as pessoas e o mundo
meras silhuetas.

Delores Pires
In: O livro dos Haicais

terça-feira, 13 de novembro de 2012

UMA NÉVOA DE OUTONO



Uma névoa de Outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.

Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta [...]

Fernando Pessoa,
in  Poesias Coligidas

NÉVOAS



...
Nas horas tardias que a noite desmaia
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,
...

Fagundes Varella

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

AMANHECER


Navego no cristal da madrugada, 
Na dureza do frio reflectido, 
Onde a voz ensurdece, laminada, 
Sob o peso da noite e do gemido.

Abre o cristal em nuvem desmaiada, 
Foge a sombra, o silêncio e o sentido 
Da nocturna memória sufocada 
Pelo murmúrio do dia amanhecido.

 José Saramago

domingo, 11 de novembro de 2012

MULHER AO CAIR DA TARDE




Ó Deus,
não me castigue se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos,
nossos verbos têm tempos,
não são como o Vosso,
eterno.

Adélia Prado
In Oráculo de Maio

PÁSSARO-POESIA



Carrega-me contigo. Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.
No Amanhã.

Hilda Hilst

sábado, 10 de novembro de 2012

HARMONIA DO ANOITECER



Eis chegado o momento, entre luz e caligem,
cada flor se evapora, incenso a voar;
perfumes e canções, na tarde, a girar,
valsa desconsolada, lânguida vertigem!

Cada flor se evapora, incenso a voar;
vibram os violinos, corações se afligem;
valsa desconsolada, lânguida vertigem!
É belo e triste o céu, campo-santo no ar.

Vibram os violinos, corações se afligem,
suaves corações que a noite vem magoar!
É belo e triste o céu, campo-santo no ar;
o sol já se afogou no seu sangue de origem.

Suaves corações que a noite vem magoar
das luzes que se vão cada vestígio exigem!
O sol já se afogou no seu sangue de origem...
Tua lembrança em mim brilha como o luar!


Charles Baudelaire
Tradução-Jorge Pontual

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

SOMBRA E NÉVOA



Cai o crepúsculo. Chove.
Sobe a névoa... A sombra desce...
Como a tarde me entristece!
Como a chuva me comove!
Cai a tarde, muda e calma...
Cai a chuva, fina e fria...
Anda no ar a nostalgia,
Que é névoa e sombra em minh’alma.

Há não sei que afinidade
Entre mim e a natureza:
Cai a tarde... Que tristeza!
Cai a chuva... Que saudade!


Da Costa e Silva,
in Poesias Completas

terça-feira, 6 de novembro de 2012

FRAGMENTO LITERÁRIO

...

"Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra.
Vivemos, num lusco-fusco de consciência,
nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser.
Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa,
e há um erro cujo ângulo não sabemos.
Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo;
por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário.
Todo o mundo é confuso, como vozes na noite. “

Bernardo Soares, (Fernando Pessoa)
in O Livro do Desassossego

ORVALHO DA MANHÃ...




Orvalho da manhã, 
pranto da noite,
Luz que só tinha sombra 
e clareou.

Como um poema que 
se derramou
Sobre o corpo da vida
Mal acordada,

Assim és tu,
pura emoção vertida,
Voz do silencio,
solidão molhada.

Miguel Torga,
Do sabor das coisas

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

MADRUGADA NO CAMPO



Com que doçura esta brisa penteia
a verde seda fina do arrozal –
Nem cílios, nem pluma, nem lume de lânguida
lua, nem o suspiro do cristal.

Com que doçura a transparente aurora
tece na fina seda do arrozal
aéreos desenhos de orvalho! Nem lágrima,
nem pérola, nem íris de cristal...

Com que doçura as borboletas brancas
prendem os fios verdes do arrozal
com seus leves laços! Nem dedos, nem pétalas,
nem frio aroma de anis em cristal.

Com que doçura o pássaro imprevisto
de longe tomba no verde arrozal!
- Caído céu, flor azul, estrela última:
súbito sussurro e eco de cristal.

Cecília Meireles

domingo, 4 de novembro de 2012

SANTO E SENHA



Deixem passar quem vai na sua estrada.
Deixem passar
Quem vai cheio de noite e de luar.
Deixem passar e não lhe digam nada
Deixem, que vai apenas
Beber água de sonho a qualquer fonte;
Ou colher açucenas
A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.
Vem da terra de todos, onde mora
E onde volta depois de amanhecer.
Deixem-no pois passar, agora
Que vai cheio de noite e solidão
Que vai ser uma estrela no chão.


Miguel Torga
In ‘Broma de Dios’

sábado, 3 de novembro de 2012

DA REALIDADE



Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.

Miguel Torga,
in 'Nihil Sibi'

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

CRONOS



não vejo e arde
não sei e é
tarde

Antonio Fernando de Franceschi
In ‘A Olho Nu’

CREPUSCULAR



faço a pergunta
e a cidade fenece:
o som a voz me chegam
estas:
um dedilhar
e já antigo
perverso
o véu da noite cai
em oitava:
- absoluto desconhecido?


Antonio Fernando De Franceschi
In: A Olho Nu

AUTO-ANÁLISE



Sob a intensa luz da cena
e na plateia em penumbra,
vivo e me observo a viver.

(De quem o amargo sorriso?
Quem sonha uma outra vivência?)

Helena Kolody,
in Tempo

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

FRAGMENTO LITERÁRIO


“...

Deitei-me na cama de novo enquanto os cavalos
dos poemas antigos traziam o Sol em atropelada
brilhante. Vi-os fortes e louros irromper pelo
céu onde tinha morrido de morte linda a aurora.
Abençoado seja o Sol. 
Abençoado seja o dia.
Abençoado seja o descanso. 
Abençoados sejam os pássaros diurnos e noturnos.
Abençoadas sejam as criaturas de todo o mundo.
Abençoado o fogo; a terra; o ar; a água.
Abençoada seja a aurora.
 Que me perdoa de meus pecados.

...”

Paulo Mendes Campos, 
em “O amor acaba – Crônicas Líricas e Existenciais” –

terça-feira, 30 de outubro de 2012

NA ILHA POR VEZES HABITADA




Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam. 

Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas

mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela. 


Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres

como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


José Saramago
In ‘Provavelmente Alegria’

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

TARDE TRISTE


É o Outono doente que começa.
Cada folha parece que tem pressa
De morrer.
Madura e fatigada, a natureza,
Roída por não sei que súbita incerteza,
Até nos frutos quer apodrecer.

E há um desalento igual dentro de mim.
Uma renúncia assim
Calada e conformada.
Perdi o gosto verde de cantar,
A emoção vem à tona e degenera,
Infecunda, a negar
As muitas flores que dei na Primavera.


Miguel Torga,
Diário XIV,

sábado, 27 de outubro de 2012

COM LENTO AMOR



Com lento amor olhava os dispersos
Tons da tarde. A ela comprazia
Perder-se na complexa melodia
Ou na curiosa vida dos versos.

Não o rubro elemental mas os cinzentos
Fiaram seu destino delicado,
Feito a discriminar e exercitado
Na vacilação e nos matizes.

Sem se atrever a andar neste perplexo
Labirinto, olhava lá de fora
As formas, o tumulto e a carreira,

Como aquela outra dama do espelho.
Deuses que habitam para lá do rogo
Abandonaram-na a esse tigre, o Fogo.

Jorge Luis Borges

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

ENTARDECERES



A clara profusão de um poente
enalteceu a rua,
a rua aberta como um vasto sonho
para qualquer acaso.
O límpido arvoredo
perde o último pássaro, o ouro último.
A mão andrajosa de um mendigo
agrava a tristeza dessa tarde.

O silêncio que mora nos espelhos
forçou seu cárcere.
A escuridão é o sangue
das coisas feridas.
No ocaso incerto
a tarde mutilada
foi umas pobres cores.


Jorge Luis Borges
in: Primeira Poesia

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

BERNARDO SOARES



"Os sentimentos que mais doem,
as emoções que mais pungem, 
são os que são absurdos - 
a ânsia de coisas impossíveis, 
precisamente porque são impossíveis,
 a saudade do que nunca houve, 
o desejo do que poderia ter sido, 
a mágoa de não ser outro, 
a insatisfação da existência do mundo. 
Todos estes meios tons da inconsciência da alma 
criam em nós uma paisagem dolorida,
um eterno sol-pôr do que somos...
O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer,
triste de juncos ao pé de um rio sem barcos,
negrejando claramente entre margens afastadas."

Bernardo Soares
in "Livro do Desassossego" 

NO TEU ROSTO


No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 23 de outubro de 2012

FERNANDO PESSOA



"Para quê olhar para os crepúsculos se tenho em mim
 milhares de crepúsculos diversos - alguns dos quais
 que o não são -e se, além de os olhar dentro de mim, 
eu próprio os sou, por dentro? "

Bernardo Soares,
Livro do Desassossego

JORGE AMADO



“O apito do navio era como um lamento 
e cortou o crepúsculo que cobria a cidade.” 

―Jorge Amado