quarta-feira, 31 de julho de 2013

DESEJO ESTÉTICO




A noite vem descendo ...
É a sombra de um mistério
que estende as asas no infinito do ar.
Na fímbria do horizonte,
qual branco lírio do jardim sidéreo
aparece o Luar.

Silêncio. A voz do sino
perdeu-se na amplidão. A sensitiva
reza, reza baixinho
para não despertar a patativa
que, entre as folhas do arbusto pequenino,
em doce embriaguez
dorme e sonha, talvez,
na volúpia do ninho.

O luar solitário
segue, tranqüilo, o curvo itinerário,
nas célicas regiões.
E eu sinto uma tristeza lancinante
ouvindo, a cada instante,
o adeus de nunca mais, das ilusões.

Passam auras em lânguidos queixumes,
doidejam pelo campo – os vaga-lumes,
o bosque emudeceu.
Só o rumor longínquo da cascata
repercute na mata
e a lua brilha no cetíneo céu.

Noite! Poema de estrelas! quem me dera
pelo azulado espaço,
entre as visões radiosas adejar
e, volvendo à remota primavera,
cingi-la, num supremo e longo abraço,
ao clarão do luar!

Emiliana Delminda
in Folhas Caídas

terça-feira, 30 de julho de 2013

SONETO


Hora pálida e branca, hora em que o dia
A pouco e pouco sai da sombra triste;
Hora em que o sol de longe principia
A inundar de luz tudo o que existe;

Hora branca do doce madrugar,
Hora em que a luz também toma essa cor,
Hora em que tudo acorda e a cantar
Também acorda em mim a minha dor;

Hora branca do doce alvorecer,
Hora da cor do sol que vai nascer
O seu manto de sombra a dissipar ...

Hora em que a treva aos poucos se levanta,
Hora em que a terra docemente canta,
Hora da vida toda a despertar!

Anrique Paço D"Arcos
Em Poesia completa

domingo, 28 de julho de 2013

TRANSIÇÃO



O amanhecer e o anoitecer
parece deixarem-me intacta.
Mas os meus olhos estão vendo
o que há de mim, de mesma e exata.

Uma tristeza e uma alegria
o meu pensamento entrelaça:
na que estou sendo a cada instante,
outra imagem se despedaça.

Este mistério me pertence:
que ninguém de fora repara
nos turvos rostos sucedidos
no tanque da memória clara.

Ninguém distingue a leve sombra
que o autêntico desenho mata.
E para os outros vou ficando
a mesma, continuada e exata.

(Chorai, olhos de mil figuras,
pelas mil figuras passadas.
e pelas mil que vão chegando,
noite e dia... -- não consentidas.
mas recebidas e esperadas!)


Cecília Meireles
In Mar absoluto 

À NOITE



Este silêncio, vasto e imponderável,
revive as coisas mortas
atraindo a luz em sua corte.
Tempo de sedar,
de transbordar as taças
com fluidos de lua -
e de brindar à noite.

Fernando Campanella

quarta-feira, 24 de julho de 2013

CREPÚSCULO



A luz do dia empalidece,
O Sol mergulha no ocidente!
- Momento amargo para quem padece
E busca alivio ao coração doente!
Penas de amor são um tormento,
Mágoas somente o amor encerra,,,
- Um grande amor e um grande sofrimento
Vão sempre de mãos dadas pela terra!
Mas já de mil milhões de estrelas
O céu de Deus todo se abrasa…
- Vou esconder a mais brilhante delas
E edificar sobre ela a minha casa!

António Feijó


ENTARDECER



Vejo as vermelhas caudas do crepúsculo
e o verde fulgor do mar.
Lenta é a tarde
e quero demorá-la em densas pálpebras,
consagrando-a à companheira imóvel
na melancólica quietude do casario
em que as consoantes são de espessa pedra e surda plenitude.
Neste murmúrio de sombra ainda tão solar
quero envolver-me cúmplice dos muros
e da côncava expansão do tempo,
até às praias distantes de um sossegado azul.
Assim me alongarei nas mãos da sombra imóvel
com o fogo do silêncio e a melancolia das colinas,
vivendo o instante de um dinamismo lento
em que estar é ser seguro na igualdade.


António Ramos Rosa
in Facilidade do Ar





segunda-feira, 22 de julho de 2013

CREPÚSCULO


Silencioso
Solitário
Sinistro
Um sol-poente
Celebra o suicídio da tarde.

H. Dobal

domingo, 21 de julho de 2013

O MARTELO



As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei.

Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.


Manuel Bandeira

sexta-feira, 12 de julho de 2013

LUAR PÓSTUMO



Numa noite de lua escreverei palavras,
simples palavras tão certas
que hão de voar para longe, com asas súbitas,
e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.

O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,
nascerá de novo no mundo.
Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados,
livre de pálpebras, e num país sem muros.

Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,
é doce caminhar, viver o que se vive.
Porque a noite é tão grande... Ah, quem faz tanta noite?
E estar próximo é tão impossível!

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

quarta-feira, 10 de julho de 2013

NOCTURNOS -71



Noite de folha em folha murmurada,
Branca de mil silêncios, negra de astros,
Com desertos de sombra e luar, dança
Imperceptível em gestos quietos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

HORAS MORTAS



Horas mortas ... silêncio do luar
Descendo sobre as águas;
E os rochedos na sombra a meditar
E o vento adormecendo as misteriosas mágoas.

Horas mortas ... Fantástica paisagem ...
Ó bailado das sombras pelo chão!
É quando me aparece o luar da sua imagem
No sem luz que leva ao coração.

Horas mortas de sonho e de mistério,
Em que as almas e as coisas entristecem;
E os mortos, ao luar, no cemitério,
Se levantam da campa e os vivos adormecem ...

Horas mortas da noite, em que medito;
Paisagem da saudade ...
Horas mortas, perdidas no infinito,
Quando a vida se eleva e alcança a Eternidade ...


Anrique Paço D’Arcos
in "Poesias Completas"

sábado, 6 de julho de 2013

HÁ CIDADES ACESAS NA DISTÂNCIA




Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN,
in POESIA

sexta-feira, 5 de julho de 2013

BERNARDO SOARES



Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite,
 única coisa do tamanho do Universo, torna-me,
 corpo e alma, parte do teu corpo, que eu me 
 perca em ser mera treva e me torne noite também,
 sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol 
 esperado que ilumine o futuro.

Bernardo Soares,
in Livro do Desassossego

quarta-feira, 3 de julho de 2013

CASIMIRO DE BRITO



Quando livros já não tiver
lerei as estrelas -
quando elas se cansarem
da minha solidão
lerei a palma
da mão.

Casimiro de Brito
In Arte Pobre

terça-feira, 2 de julho de 2013

CHUVA



Sobre as casas fechadas, a chuva.
Sobre o sono dos homens, a chuva.
Sobre os mortos inúmeros, a chuva.

A chuva noturna sobre as arvores.
A chuva noturna sobre os templos
A chuva noturna sobre o mar.

Sobre a solidão deste mundo, a chuva.
A solidão da chuva, na solidão.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos

HAICAI



O vidro embaçado
comunica à janela
o frio lá de fora...

Delores Pires ,
in O Livro dos Haicais

MARIO QUINTANA



"Um dia de chuva é bom para a gente comprar
livros de poemas... 
Quem perguntar por que, de nada lhe adianta
comprar um livro de poemas."


Mario Quintana,
in Caderno H