quinta-feira, 27 de junho de 2013

O NEVOEIRO DA ESPERA COLADO NOS SONHOS



Desenrola-se em nossos olhos
a vertigem transparente
que agride o declínio do dia
quando a lua se encosta nos vidros
e temos o nevoeiro da espera colado nos sonhos.
Há muito que sabemos como é intocável a luz
do orvalho na raiz da mágoa.
Palavras em estilhaços flutuam sobre os móveis
como fantasmas ou como as fadas
da mais antiga infância.
Respiramos devagar o sopro errante do vento.

Graça Pires


domingo, 23 de junho de 2013

CANÇÃO



Eras um rosto
Na noite larga
De altas insônias
Iluminada.

Serás um dia
Vago retrato
De quem se diga:
“o antepassado”.

Eras um poema
Cujas palavras
Cresciam dentre
Mistério e lágrimas.

Serás silêncio,
Tempo sem rastro,
De esquecimentos
Atravessados.

Disso é que sofre
A amargurada
Flor da memória
Que ao vento fala


Cecília Meireles
In Retrato Natural

TRISTE ENCANTO




Triste encanto das tardes borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras...
 
A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus...o frio que a pobrezinha sente!
 
Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
 
Ah, se eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!... 
 
 
Mario Quintana,
in A rua dos cataventos
 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

SENTIMENTO DA NOITE



Com o fundo poder azul da noite,
que me clareia o coração,
por uma súbita nesga entre as nuvens
reluz o mundo das estrelas e da lua.


Em seu jazigo, lampeja minha alma
com redivivo ardor;
ao pálido perfume das esferas,
a noite dedilha a harpa.


A essa convocação, míngua a penúria
e a preocupação foge.
Mesmo que eu amanhã já não esteja
aqui – aqui estou hoje! 



Hermann Hesse
In: Andares

terça-feira, 18 de junho de 2013

A NOITE



Para que durmas, meu filho,
não há mais luz: é sol posto,
não há mais brilho que o orvalho,
mais brancura que meu rosto

Para que durmas, meu filho
o caminho emudeceu,
soluça apenas o rio,
nada existe senão eu.

Desfez-se a planície em névoa,
Tolheu-se o suspiro azul.
Pousou com dedos leves,
por sobre o mundo, a quietude.

Não embalei tão somente
ao meu filho com o meu canto:
ia a terra adormecendo
ao vai-vem desse acalanto.


Gabriela Mistral

segunda-feira, 17 de junho de 2013

SONETO DA AURORA



Quando a aurora se for, não mais seremos
o que ora somos, entre a Noite e o Dia,
cegos contempladores da magia
que no aquário da noite surpreendemos.

Somos flamas do instante, e em luz ardemos
presos eternamente ao que seria
o amor em nossos corpos, alegria
do perpétuo horizonte em que nascemos.

Das corolas do céu extraio a ardente
forma de redenção cativa à hora
em que ao puro lilá fui entregar-me.

Que somos nós senão a eternidade?
O amor transfigurou-se como a aurora
e se extinguiu após enfeitiçar-me.

Lêdo Ivo 
de Central Poética

domingo, 16 de junho de 2013

À ESTRELA



Até à estrela que reluz 
Há uma distância de trespasse.
Correu milênios sua luz
Para que enfim nos alcançasse

Talvez há muito já se fora
No longe azul extinto astro
Porém seus raios só agora
Ao nosso olhar mostram seu rastro.

A aura da estrela que morreu
No alto do céu se faz dar fé.
Era, e ninguém a percebeu,
Hoje que a vemos já não é.

Também assim a nossa dor
Na abissal noite se finda.
Porém a luz do extinto amor
Os nossos passos segue ainda.

Mihai Eminescu
in "Luar"

AO LUAR



Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha táctil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado…

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!


Augusto dos Anjos 
de "Eu"

CITAÇÃO



"...Hoje sou pastor de rios sentinela de 
colinas mirante das fortalezas nas ameias 
das neblinas...
É por mim que à noite os ventos vêm chorar
sobre as ruínas..."

Afonso Estebanez Stael

quarta-feira, 12 de junho de 2013

NOTURNO DO AMOR



Vem de manso...de leve...e suave e doce
Como um silêncio estático de prece...
Que a sua vida seja tal qual fosse
Apenas a saudade que me viesse...

Vem de manso...Na névoa da penumbra,
Faze um gesto litúrgico de benção!
A alta noite tristíssima deslumbra
Dos meus olhos nostálgicos, que pensam...

Sugere, mas não fales... Porque a frase
É vã, no amor...Mistério...Sonolência...
O esquecimento, quase...A morte, quase...
Intuições...Irrealismo...Inconsciência...


-Cecília Meireles- 
In:"Mar absoluto"



terça-feira, 11 de junho de 2013

DAI-ME SENHOR


Senhor, dai-me a inocência dos animais 
para que eu possa beber nesta manhã
a harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã
de humanidade
apagai a vaidade,
para que eu me perca e me dissolva
na perfeição da manhã
e para que o vento me devolva
a parte de mim que vive
à beira dum jardim que só eu tive.


Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 4 de junho de 2013

PRÓLOGO



Estrelas que luzis na abóbada infinita,
Inquietamente, assim, como um olhar que fascina,
Vendo-vos palpitar, meu coração palpita,
Mordido de paixão por essa luz divina ...

Largos céus ideais, região diamantina,
Mirífico esplendor, ó pérola esquisita,
Quanta cobiça vã, que nunca se imagina,
Quanto furor enfim o ânimo me excita!

É impossível, pois, que eu amo unicamente,
A névoa que fugiu, a forma evanescente,
A sombra que se foi tal qual uma visão ...

E por isso também, por isso é que eu suponho
Que a vida, em suma, é um grande e extravagante Sonho,
E a Beleza não é mais do que uma ilusão!


Emiliano Perneta
in Ilusão & outros poemas

APARIÇÃO




Na penumbra
Se vivem reflexos de esperança, 
na pausa da incerteza!

Entre raios estelares,
Prenúncio de alva beleza,
Gritos doridos, cânticos,
Adoração e prece!

E, de uma voz doce,
Celestial, melodiosa,
Um chamamento de amor:

“dizei a todos que venham também...”!

E vieram... com fé,
E voltaram... em paz,
Procurando tal amor!


Joaquim do Carmo
em ‘Amanhecer Pelo Fim da Tarde”

domingo, 2 de junho de 2013

CREPÚSCULO



Resplandece o crepúsculo de jade,
de turquesa, de opala e cornalinas.
Pelos céus há pavões.Toda a cidade
é lilás com repuxos de anilinas.

As aves cor de gesso, à claridade
do acaso, ficam quase solferinas.
A cor douradas agora tudo invade,
tornando as passifloras ambarinas.

A natureza cintilante e amena
sardanapalescamente se decora,
brilhando mais que as asas da falena.

Todo o horizonte de lilás se enflora.
Traja galas de príncipe a açucena.
Não parece o poente mas a aurora.

Sosígenes Costa
In Poesia Completa